Com as rendas inflacionadas e a falta de habitação acessível em Espanha, há cada vez mais pessoas a praticar a inqui-ocupação — ou seja, começam como inquilinos com contrato, mas depois deixam de pagar renda e ocupam a casa.
Durante nove meses, José Ignacio Ponce viveu numa velha carrinha de três metros quadrados estacionada em frente ao edifício onde possui um apartamento de três quartos e 102 metros quadrados em Valência, a terceira maior cidade da Espanha.
O motivo: o seu imóvel tinha sido tomado por uma “inqui-ocupa” – o termo usado pelos espanhóis para designar inquilinos que praticam a nova tática de entrar num imóvel com um contrato de arrendamento, para em seguida deixarem de pagar.
“A minha vida veio abaixo. Tudo o que eu tinha foi parar a um depósito, abandonado. Os meus discos, as minhas roupas, os meus móveis, as minhas recordações. E a lei espanhola permite que isso aconteça. É uma loucura“, diz José à BBC News Brasil.
A “inqui-ocupação” é a nova forma de ocupação ilegal de imóveis na Espanha – denuncia a Plataforma dos Afetados pelas Ocupações (PAO), associação que reúne pequenos proprietários atingidos também por ocupações diretas de domicílios em todo o país.
Enquanto os dados mais recentes do governo dão conta de 15 289 casos de ocupação ilegal de imóveis em 2023, a Plataforma calcula que esse número chega a 80 mil – especialmente devido ao aumento exponencial de casos de “inqui-ocupação”, que não são contabilizados nas estatísticas oficiais.
Em Espanha, como noutros países, o grande número de casas e apartamentos arrendados para turistas retirou do mercado milhares de imóveis que anteriormente eram destinados à habitação.
Mas, segundo juristas, o que diferencia o problema em Espanha do de outros países europeus é que as leis do país são consideradas mais lenientes dificultando a retomada dos imóveis ocupados.
A lei espanhola não permite a retomada à força de um imóvel ocupado: se o proprietário tentar trocar a fechadura da porta, é ele quem pode ser denunciado à polícia pelos ocupantes.
E pela lei, proprietários de imóveis ocupados são obrigados a continuar a pagar as contas de serviços básicos como luz e gás.
Pelo Código Penal espanhol, trocar a fechadura de uma casa ocupada ou cortar serviços básicos ao imóvel pode ser considerado um delito de coação – segundo o qual o acusado busca restringir a liberdade ou forçar um indivíduo a fazer algo contra a sua vontade.
É um crime que prevê multa e até pena de seis meses a três anos de prisão, e o ocupante do imóvel pode ainda pedir indemnização ao proprietário por perdas e danos.
“Basicamente, o que a lei espanhola não permite é que os proprietários façam justiça com as próprias mãos”, diz Josep Riba, advogado criminalista e sócio do escritório de advocacia Cuatrecasas, um dos maiores da Espanha.
Segundo a PAO, o fenómeno tem sido agravado pelo Real Decreto-Lei 11/2020, que no auge da crise provocada pela pandemia de covid-19 determinou a suspensão de despejos de pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e sem alternativa habitacional. Desde 2020, o decreto tem sido renovado ano após ano.
Politização
O problema acabou por se transformar em bandeira política, com partidos de direita a acusar o governo de falhar em programas de incentivo à construção de novas residências e de não ter coragem política para mudar a lei.
Pelo seu lado, o governo alega que notícias falsas sobre o tema distorcem a percepção e levam um terço dos espanhóis a terem medo de ter a sua casa ocupada, enquanto o problema não chega a afetar diretamente nem 1% das habitações.
Os apoiantes do governo alegam que os números divulgados pela imprensa estão inflacionados por fake news de grupos de direita para causar um clima de medo, insegurança e desconfiança do governo.
Em discurso no Congresso no ano passado, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez (do Partido Socialista Operário Espanhol, o PSOE), afirmou que “a disseminação de notícias falsas faz com que 34% dos espanhóis tenham medo de ter sua casa ocupada, quando este problema afeta menos de 0,06% das casas do país”.
O calvário de José
O calvário de José Ignacio Ponce começou em agosto de 2023, quando a inquilina parou definitivamente de pagar a renda após ter pagado apenas uma pequena parcela do valor nos dois meses anteriores.
“Os vizinhos do apartamento de cima, que eu conhecia há muitos anos, disseram que a filha deles precisava de um lugar para morar. Pensei então que seria uma boa ideia arrendar a uma pessoa com referências. Mas enganei-me“, lembra José.
Uma cláusula contratual estabelecia que a inquilina deveria deixar o imóvel após dois meses de inadimplência. Mas em janeiro de 2024, ela continuava no apartamento, com os seus dois filhos pequenos. Sem pagar.
“E naquele mês de janeiro, eu separei-me da minha namorada. Não tinha para onde ir. Tinha que voltar para a minha casa, mas a inquilina continuava no imóvel”, conta José.
“Eu dizia-lhe, ‘se os seus pais vivem num apartamento de quatro quartos logo no andar de cima do meu imóvel, por que não se muda para lá? Ou se não pode pagar renda, por que não contata os serviços sociais? Mas não me deixe na rua!’ Tentei dialogar, mas de nada adiantou.”
José nem pensou em trocar a fechadura para recuperar o imóvel à força. “A inquilina e seu pai certamente gostariam que eu tivesse feito isso. Mas eu sabia que a lei proíbe, e que eles poderiam ter me denunciado à polícia”, diz.
Foi então que, aos 51 anos, José foi morar dentro da sua carrinha – uma Volkswagen T3 California, de 1989, que costumava usar para viajar de férias ou nos finais de semana. Decidiu então entrar em contato com a Plataforma dos Afetados pelas Ocupações.
“Eles ajudaram-me muito a traçar uma estratégia. Porque recuperar um imóvel ocupado na Espanha é como jogar uma partida de xadrez“, define José.
A inquilina, diz ele, já tinha a sua estratégia: declarar-se vulnerável, e aproveitar-se das proteções legais que dificultam ações de despejo contra pessoas em situação de vulnerabilidade.
O que a inquilina não esperava é que José, agora registado como morador de uma carrinha, também se fosse declarar vulnerável.
“E isso foi um fator-chave para conseguir solucionar o problema. Do contrário, teria demorado dois ou três anos para recuperar o meu imóvel”, destaca.
“O juiz disse na sentença que quando duas partes são vulneráveis, ganha sempre a parte que é o dono do imóvel. Ele tem prioridade. A inquilina era vulnerável, mas eu também. O juiz também levou em consideração o facto de que os pais da inquilina viviam no andar de cima num apartamento de quatro quartos”, observa ele.
Apesar da ordem judicial para que a inquilina desocupasse o apartamento em 29 de julho passado, ela não saiu do imóvel. E os tribunais entraram em recesso de verão.
“Sofri com as ondas de calor, com 45 graus dentro da carrinha”, revolta-se José.
Quando finalmente a polícia chegou para efetivar a ação de despejo, a 26 de setembro, a inquilina exigiu que ele assinasse um papel responsabilizando-se pelos dois gatos que ela tinha no imóvel. Era outro truque para paralisar o despejo, diz José:
“Muita gente usa esse truque. Sabe porquê? Porque a lei proíbe que se deixe animais abandonados. Se eu me negasse a assinar, o juiz determinaria que a ação de despejo não poderia ser realizada.”
“Quando uma equipa de TV veio filmar a minha volta ao apartamento, a família da inquilina começou a dar fortes golpes no chão do apartamento de cima, para fazer todo o barulho possível e impedir a filmagem. A equipa de TV chegou a assustar-se, porque batiam tanto no chão que a casa tremia”, diz ele.
José decidiu nunca mais voltar a viver no apartamento. Colocou o imóvel à venda e mudou-se temporariamente para o apartamento de uma tia, a 30 quilómetros de Valência, enquanto faz planos para comprar um imóvel em outro lugar.
“Eu não poderia viver tranquilo no apartamento, com essas pessoas a viver no andar de cima.”
ZAP // BBC