Quase 150 mulheres que relataram ter sido drogadas com seringas durante o festival anual de música de rua em França, aguardam ainda os resultados dos testes toxicológicos para saber com que foram injetadas. Há vários anos que se registam surtos de ataques deste tipo em França e Reino Unido.
Eram quase 1.30 da manhã, a multidão começava a dispersar nas ruas de Bordéus, quando Manon, 22 anos, sentiu a picada de uma agulha a perfurar o seu braço.
“Alguém tocou no meu antebraço esquerdo. Comecei a sentir dormência no músculo, como quando levamos uma vacina. Após cerca de 30 minutos, a marca da injeção apareceu”, contou a jovem à CNN.
Ela é uma das jovens mulheres que no dia 21relataram ter sido picadas com seringas e ter-se sentido mal enquanto participavam na Fête de la Musique, um festival anual de música ao ar livre que teve lugar em vilas e cidades por toda a França no fim de semana passado.
No total, 145 pessoas apresentaram queixa por terem sido picadas, muitas vezes em locais com grande aglomeração de pessoas. Só em Paris foram registados 13 casos, entre os quais três vítimas com idades entre os 15 e os 18 anos, que foram hospitalizadas depois de se sentirem mal
Manon e as restantes vítimas estão agora à espera dos resultados dos testes toxicológicos para determinar com que substância foram injetadas.
O Ministério do Interior francês não confirmou se os casos estão ligados ao fenómeno de “needle spiking“, prática que envolve a injeção clandestina de substâncias como drogas de submissão química, como Rohypnol ou GHB, com o intuito de incapacitar as vítimas para assaltos ou abusos sexuais.
“Estão a ser feitos testes toxicológicos e a investigação está em curso“, disse um porta-voz do ministério, acrescentando que as autoridades estão a levar o assunto “muito a sério“. A polícia francesa deteve na altura 12 suspeitos, mas até agora ninguém foi acusado.
Segundo a influencer francesa Abrège Soeur, o objetivo dos agressores não identificados “não é apenas drogar mulheres. É instalar o medo“.
“Quando as pessoas começam a dizer que vai haver ataques de agulha, espalha-se na forma de rumor – as pessoas mencionam-no em grupos de chat, outros apanham a ideia, e simplesmente amplifica-se“, diz.
Antes do festival, Soeur tinha avisado os seus seguidores de que homens nas redes sociais estavam a planear ataques com seringas — sem especificar algum grupo específico de homens e com que intuito o pretendiam fazer.
Houve surtos semelhantes de ataques relatados anteriormente em França na Fête de la Musique de 2022 e no Reino Unido em outubro de 2021, quando as discotecas reabriram e os estudantes regressaram à universidade após os confinamentos da pandemia de Covid, recorda a The Week.
Em fevereiro de 2022, a polícia britânica tinha recebido mais de 1.300 relatos de picadas com agulhas nos seis meses anteriores, sem um único caso confirmado ou condenação.
“Pânico social”
Segundo dizia o Le Monde em 2022, “os relatos são sempre os mesmos: um atacante invisível; vestígios de uma picada de agulha no braço, nádegas ou costas; sintomas de intensidade variável, como dores de cabeça, ou vómitos,… e análises toxicológicas que se revelam negativas“.
Pode haver um elemento de “pânico social” nestes relatos de picadas com agulhas, diz a Psychology Today: em 2022, os jovens sentiam medo das vacinas, preocupação sobre transmitir Covid a alguém vulnerável, e culpa de se divertirem.
No outono de 2021, surgiram relatos chocantes por toda a Grã-Bretanha sobre um novo perigo para as jovens mulheres: o “needle spiking”.
Tipicamente, a vítima estava numa discoteca com amigas, quando relatava sentir-se tonta após consumir uma pequena quantidade de álcool. Desmaiava e era levada para casa ou para o hospital pelas amigas. No dia seguinte, tinha dificuldade em recordar-se do que aconteceu.
Mais tarde, após examinarem os seus corpos, muitas afirmavam ter encontrado uma picada de agulha, arranhão ou nódoa negra que se presumia ser um local de injeção.
Logo após os primeiros relatos, as jovens mulheres acorreram às redes sociais a partilhar as suas experiências, juntamente com fotografias de aparentes feridas de punção. Formaram-se grupos para alertar para os perigos do “needle spiking”.
Os políticos apelaram a investigações, e em fevereiro de 2022, mais de 1300 tinham sido feitos à polícia durante os 6 meses anteriores.
Após anos de investigações a estes casos, não há ainda uma conclusão clara sobre se são ataques organizados com intuitos malévolos, um parvo jogo misógino, ou simplesmente “paranoia coletiva“.
Surtos anteriores de casos de picadas com agulhas foram ligados a medos sociais, como a transmissão de VIH. Em 1998, uma “lenda urbana” no Canadá envolvia jovens em saídas noturnas que seriam picadas com agulhas contaminadas, e depois encontravam uma nota no bolso a dizer: “Bem-vinda ao mundo da SIDA“.
Nos incidentes recentes em França, algumas picadas acabaram por se revelar ter sido causadas por palitos — e algumas eram picadas de mosquito, diz o The Times. Mas, realça o jornal, alguns casos foram mesmo confirmados como picadas de seringas.
A polícia francesa está a considerar a teoria de que as publicações nas redes sociais sobre picar mulheres como um jogo tanto podem ter dado origem a picadas de seringas por ‘brincadeira’, como levado a casos em que os ataques foram na realidade apenas imaginários.
Em qualquer dos casos, a justiça e a polícia têm atualmente meios para identificar os autores deste tipo de publicações, que não serão provavelmente terroristas profissionais escudados por sofisticadas VPNs e redes de triangulação de IPs — e talvez esteja na altura de acabar com a brincadeira.