Benim e Gana querem sarar as feridas do tráfico de escravos ao dar cidadania aos descendentes da África subsariana. Iniciativas atraem especialmente brasileiros.
Cada vez mais brasileiros negros partem para África em busca da sua ascendência, herança e identidade. A jornada tem, em particular, o Benim como destino, país da África Ocidental que, com uma nova lei que facilita a obtenção de cidadania a quem provar ascendência da África subsariana, está a empenhar-se no acolhimento de descendentes de africanos escravizados.
Uma reportagem do mês passado do jornal britânico The Guardian partilha as histórias de alguns brasileiros — que constituem a maior população negra fora de África — que estão a “voltar” à sua pátria ancestral. Um desses indivíduos é João Diamante, chefe de cozinha do Rio de Janeiro, de 33 anos. Quando chegou a Cotonou, a maior cidade do Benim, teve um sentimento imediato de pertença.
“A primeira coisa que senti foi que estava em casa“, recorda o chef carioca. “Ninguém olhava para mim como se tivesse medo de mim por causa da cor da minha pele, pelo contrário, vi pessoas iguais a mim. Vi semelhanças”, diz a celebridade no documentário de quatro partes que lançou para contar a sua jornada.
Nascido em Salvador, cidade conhecida pela sua forte cultura afro-brasileira, Diamante conta que foi criado numa comunidade que mantinha tradições originárias de África, um legado do comércio transatlântico de escravos.
“Tinha a certeza de que [Benim] era um sítio que conhecia: o seu cheiro, a sua música, a sua dança, o seu som, o barulho das buzinas dos carros, a atmosfera (…) quero um passaporte brasileiro e um passaporte beninense”, confessa o chef: “sonho ter um passaporte do Benim, porque é de África que eu venho”.
Nova lei acolhe descendentes da África subsariana
Entre os séculos XVI e XIX, o Brasil recebeu aproximadamente 40% dos 12 milhões de africanos escravizados transportados através do Atlântico. Muitos desses indivíduos escravizados foram levados do atual Benim. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravatura, em 1888, e as profundas influências africanas vivem até hoje na cultura, música e culinária.
A nova lei da cidadania do Benim, proposta pelo Presidente Patrice Talon e aprovada em outubro, procura em parte sarar as feridas do tráfico transatlântico de escravos, ao permitir que qualquer pessoa com ascendência comprovada da África subsariana que tenha sido retirada à força do continente devido à escravatura possa requerer a cidadania. Uma vez aceite o pedido de cidadania, é oferecido um certificado provisório de nacionalidade válido por três anos e, para obter a cidadania, a pessoa tem de permanecer durante esse período no Benim pelo menos uma vez.
A nacionalidade dá direito a passaporte e residência, mas não ao voto: para tal, é necessária a cidadania plena, que exige residência de pelo menos cinco anos no país.
O Benim espera que esta iniciativa, aberta a todos os maiores de 18 anos que não tenham outra nacionalidade africana, não só restabeleça os laços históricos, mas também que encoraje os afrodescendentes de todo o mundo a considerarem o país a sua pátria. A iniciativa despertou imenso interesse especialmente no Brasil.
“Mais de um milhão de beninenses vieram para a Bahia durante a escravatura… Imaginem o que isso significa [em termos da população atual]… São milhões e milhões de brasileiros”, explica Marcelo Sacramento, cônsul honorário do Benim em Salvador.
Embora o país africano (cujos reis capturaram e venderam escravos a comerciantes portugueses, franceses e britânicos durante mais de dois séculos) não espere que milhões de brasileiros procurem a cidadania, o governo pretende posicionar o país como uma porta de entrada para a reconexão com as raízes: estão em curso planos para introduzir um voo direto entre Salvador e Cotonou, reduzindo o tempo de viagem de mais de 20 horas para menos de 6 horas.
“Ano do Regresso” e “dezembro Detty” no Gana
O Benim já conta com uma forte comunidade brasileira, que conseguiu retornar ao continente africano ainda no século XIX. Fazem parte dos “tabons“, um grupo étnico de africanos libertados que, desconhecendo as línguas locais, responderiam frequentemente “tá bom” a tudo o que lhes era dito ou perguntado.
Mas o Benim não é o primeiro país africano a incentivar o regresso da “diáspora africana”. Os tabons ter-se-ão estabelecido inicialmente em Acra, a capital do Gana, que por sua vez lançou a sua iniciativa “Ano do Regresso” em 2019, comemorando o 400.º aniversário da chegada dos africanos escravizados aos Estados Unidos.
O governo ganês concedeu cidadania a afroamericanos e dispensou os requisitos de visto para certas nações das Caraíbas, uma iniciativa que levou a um aumento do turismo e da migração, especialmente durante o mês de dezembro, agora conhecido como “dezembro Detty”.
De igual modo, o Gabão, por exemplo, começou a cidadania a afro-americanos de renome, incluindo o rapper Ludacris e o ator Samuel L. Jackson.
Testes de ADN pedidos “não são testes de ancestralidade”
Para obter a cidadania beninense, os candidatos devem apresentar documentação e submeter-se a um teste de ADN aprovado pelo governo para provar a sua ascendência africana subsariana, mas alguns especialistas já questionaram a fiabilidade dos testes de ADN para determinar a ascendência exata.
“Os testes de ADN não são testes de ancestralidade“, diz um professor de antropologia da Universidade de Princeton. Com eles, “estão apenas a dizer: ‘tendo em conta toda a nossa base de dados, você é muito parecido com estas pessoas cujo ADN temos de Lagos, na Nigéria… por isso, a sua ascendência é da África Ocidental'”, defende Agustín Fuentes.
As autoridades beninenses aceitam, além destes testes, testemunhos e registos familiares autenticados. Mas mesmo assim, “nem toda a população negra terá condições de fazer exames de mapeamento genético ou pagar por outros documentos que não sejam sua própria afirmação”, explica o cientista social Dagoberto José Fonseca, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), citado pela Globo.
Se os brasileiros querem voltar para casa, quem é que fica no Brasil? Os índios?