As apostas davam favoritismo ao Benfica no dérbi. Isto apesar de ser o “leão” a visitar a Luz com o escudo de campeão ao peito e com um ciclo recente marcado por vitórias consecutivas.
O ascendente atribuído à “águia” não assentava em qualquer clubite das casas de apostas, pois as ausências de Coates e Palhinha prometiam tolher o habitual despenho leonino.
Nada mais errado: Rúben Amorim foi ao Estádio da Luz oferecer um “chocolate quente natalício”. Onde reside o segredo da receita para um triunfo tão categórico no dérbi?
Começámos por destacar o MVP da partida (Matheus Nunes) e a importância que teve no triunfo leonino, mas isso não explica tudo, há mais a descobrir, na receita de Amorim portanto… vamos a isso.
Mesmo sistema, mundos diferentes
As duas equipas têm características vincadas. Os seus 3-4-3 são diferentes, muito diferentes e parece já pacífico que, do lado do Benfica, este sistema torna a vida dos “encarnados” difícil quando perante equipas que recuam, reduzindo muito a presença e a efectividade benfiquista na área.
Ao invés, o Sporting é um conjunto que não tem medo de assumir o recuo, quando lhe convém, e explorar o futebol directo, com passes longos. Tendo em mente estas duas filosofias, não deixámos de estranhar o “onze” inicial do Benfica, com três peças móveis prontas para atacar uma profundidade que o Sporting raramente concede.
Perante as escolhas de Jesus previam-se dificuldades para os “encarnados” caso o Sporting marcasse cedo… e marcou. Esse golo madrugador foi fundamental para o desenrolar de toda a partida, algo de que ficámos mais convencidos ainda pelas palavras de Rúben Amorim no final do jogo – mas já lá vamos.
Nada como recorrer aos nossos mapas do jogo para tentar perceber como foi apresentada a “aula” de Amorim.
Os heatmaps que ilustram as palavras de Amorim
Tanto os dois heatmaps como os dois mapas de acções com bola mostram algo incontornável. O Benfica teve mais bola (692 acções contra 454), distribuída mais ou menos equitativamente entre o seu meio-campo e o do Sporting, com um detalhe que nos remete de imediato para algo que Amorim disse no fim do jogo, na “flash interview”:
“Sabíamos que o Benfica é muito forte quer na profundidade, quer com o Rafa entrelinhas, por isso agrupámos mais a equipa e esperámos um bocadinho mais antes de pressionarmos e escolher os momentos de pressionar”
Esta frase do timoneiro do Sporting é como que um resumo da “lição”, e vai de encontro ao que escrevemos anteriormente sobre a profundidade que o Sporting raramente dá. Residiu aí o problema benfiquista e a incapacidade, em especial na primeira parte, de chegar com perigo à área leonina.
Além de os “leões” terem obrigado o Benfica a canalizar o jogo para as faixas laterais – manietando depois os seus movimentos -, basta um olhar rápido pelos mapas acima para ver o rigor das palavras de Amorim, com a zona do grande círculo a ter vazios enormes, em especial do lado leonino.
O esvaziamento do “miolo”
É esta mesmo a palavra, “esvaziamento”, de forma vincada nos momentos defensivos, e por dois motivos diferentes. Como disse Amorim, o Sporting anulou a profundidade nas suas costas, inutilizando a velocidade de Rafa, Darwin e Everton, e isso faz-se recuando um pouco as linhas, primeiro a defensiva, depois também o meio-campo, para evitar as tais incursões de Rafa entrelinhas. Em seguida foi temporizar e escolher os momentos ideais para pressionar.
As acções defensivas e recuperações de posse do Sporting mostram isso mesmo, ou aconteciam bem dentro do meio-campo benfiquista ou logo à frente da defesa leonina, deixando o Benfica jogar no grande círculo, longe das zonas de decisão, e caindo em cima onde o último passe deveria sair (e não saiu como previsto do lado “encarnado”, como veremos no ponto 4).
Ao todo o Sporting fez 73 acções defensivas, entre desarmes (17), intercepções (17), alívios (23, pois o Benfica começou a despejar bolas para a área leonina, perante a incapacidade de “furar”) e bloqueios vários (16). Acções defensivas no meio-campo benfiquista foram 17, menos três que as realizadas pelas “águias”, mas tendo em conta que o Sporting jogou recuado, essas 17 são um número com um peso relativo acima da média.
Rúben monta armadilha ao Benfica
O mapa da esquerda mostra as zonas em que o Benfica perdeu a posse de bola. Poucas (10) no terço defensivo, mais no terço intermédio (49) e a grande maioria no último terço, em especial na área leonina. O Sporting esperou pelo Benfica para lhe roubar a bola ou nas faixas laterais, ou na zona em frente à grande área “verde-e-branca”, ou aliviando quando o esférico chegava à área, onde os centrais iam resolvendo os problemas.
E quando a recuperavam? No momento em que os “leões” passaram a ter a bola, geralmente colocavam-na rapidamente na frente, em passes aproximativos (mapa do meio) ou conduções aproximativas (à direita), raramente passando pela “casa da partida”, ou seja o círculo central, daí o Benfica ter também poucas acções defensivas ou recuperações nesta zona.
O Sporting fez 26 passes aproximativos (o Benfica 36, mas no caso o relevante é mesmo as zonas de onde partiram), quase nunca oriundas daquela estreita faixa de meio-campo, a maioria a acontecer do primeiro terço ou logo à sua saída, ou já mesmo do meio-campo benfiquista, a maioria para as laterais e para a esquerda, aproveitando a lentidão de André Almeida. E foi assim que Matheus Nunes marcou.
Esta explicação aplica-se também às conduções aproximativas – que aproximam a bola 25% da baliza adversária do ponto de início e galgando pelo menos dez metros -, que podem ser vistas no mapa da direita. Foram 15 as realizadas pelo Sporting neste jogo, 18 do Benfica, mas as dos “leões”… consequentes e decisivas.
Linhas de passe cortadas
Como referimos no ponto 2, o Benfica conseguia jogar no grande círculo, longe das zonas de decisão, mas o Sporting impedia que isto acontecesse onde geralmente sai o último passe. Esse facto fica patente nos dois mapas de passes para finalização, à esquerda.
O Benfica fez oito (metade dos quais saíram dos pés de João Mário), só um realizado no eixo central na saída da área leonina. Todos os outros (excepto um do grande círculo) saíram de cantos ou de incursões em que os jogadores do Benfica conseguiram finalmente ultrapassar os alas sportinguistas. Ao invés, o Sporting fez 11 passes para finalização, a maioria de zona central para as faixas, mais ou menos no raio de acção de Julian Weigl (já lá iremos).
Os mapas de remates, à direita, são o reflexo do que referimos em cima, com os “leões” a diversificarem muito mais os 14 disparos que realizaram (a amarelo os golos, a azul os enquadrados).
Weigl e Ugarte personificam a “décalage”
Na antecâmara do dérbi muito se falava na qualidade de Julian Weigl, médio do Benfica em boa forma, e das dúvidas sobre Manuel Ugarte, com a difícil tarefa de fazer esquecer João Palhinha. No final só deu Ugarte para dar e vender, com Weigl a ser praticamente tão memorável na história do dérbi como… Palhinha.
Os números defensivos dos dois homens mais recuados revelam o lado individual – certamente afectado pelos contextos colectivos – na base da diferença entre as duas equipas. Weigl fez apenas quatro acções defensivas (dois desarmes, uma intercepção e um bloqueio de passe), ao mesmo tempo que foi driblado cinco vezes, três já no primeiro terço.
Ao invés, Ugarte, considerado mais um jogador de transporte e longe das características de Palhinha, fez oito acções defensivas no meio-campo do Benfica, máximo do jogo (e recorde individual da época entre todos os adversários defrontados pelos “encarnados”), quatro desarmes, mais um alívio, cinco intercepções e seis bloqueios de passe, estes dois também máximos. E só foi driblado duas vezes.
// GoalPoint