Uma investigação do Business Insider expôs casos de contas e grupos secretos no Facebook que passam publicitam “medicamentos” e “tratamentos” alternativos que custam milhares de dólares mas que, na verdade, não passam de fraudes.
Segundo noticiou a Visão, um dos artigos do Business Insider começa como uma flecha direta ao coração dos leitores. “Mary” telefona a Amanda Mary Jewell, uma britânica que se diz investigadora de cancro, e descreve como está a lutar para aguentar. “A minha mãe tem cancro da mama de estádio 3. Espalhou-se à direita, nos gânglios linfáticos, e está a fazer quimioterapia. É muito angustiante. Vomita e o cabelo começou a cair”, conta.
No mesmo telefonema, a mulher, igualmente britânica, fala também do filho, de seis anos, uma “criança autista não verbal, muito exigente com o que come, muito violenta”. Pede para marcar uma consulta com Amanda Mary Jewell e conta que conseguiu o contacto depois de aderir ao seu grupo de Facebook, o GcMAF Oracle, a que acedeu por convite. Espera que a consulta possa levar à cura da sua mãe e do seu filho.
O nome do grupo é uma referência à GcMAF (acrónimo em inglês de Componente de Globulina no Fator de Ativação de Macrófagos), um tipo de proteína que ajuda a reforçar o sistema imunitário e a combater infeções.
O jornalista do Business Insider, Tom Porter, lembra que um movimento de medicina alternativa marginal anda há anos a defender que o aumento da quantidade desta substância no corpo pode ajudar a combater doenças incuráveis. Amanda Mary Jewell alega que o tratamento com GcMAF é inovador e resulta até para o autismo e o cancro em estádio avançado.
Voltando a “Mary” – Amanda Mary Jewell diz-se que conseguirá espaço na agenda para ver a sua mãe dentro de uma semana. Vai avisando que, além de doses de GcMAF, o tratamento pode envolver uma cirurgia na sua clínica, no Belize, na América Central. E que, excluindo as viagens, ficará tudo por 25 mil dólares (cerca de 22 mil euros).
Uma clínica nas Caraíbas
De acordo com a Visão, “Mary” foi o nome fictício escolhida por Emma Delmayne, uma ativista contra a desinformação médica, para se apresentar a Amanda Mary Jewell. Esta última, que afirma no Facebook ser “professora assistente de medicina”, não tem qualquer qualificação científica.
Durante anos, a clínica aonde “Mary” iria levar a mãe funcionava em Progresso, uma cidade do distrito de Corozal, no norte do Belize. Chamava-se Flower of Health and Wellbeing Center e nunca esteve registada junto das autoridades médicas do país.
No início deste ano, quando os inspetores do Ministério de Saúde disseram a Amanda Mary Jewell que consideravam os seus anúncios e a sua clínica problemáticos, esta respondeu que estava de saída do país. Dois dias depois, os mesmos inspetores confirmavam que tinha ido embora logo nessa noite.
Era naquela clínica, no Belize, que a própria Amanda Mary Jewell injetava os pacientes com GcMAF. Nunca ninguém a viu a realizar qualquer cirurgia, mas no canal de YouTube da Healing Oracle havia imagens suas a administrar a substância. Quando falou com “Mary” sobre o preço do tratamento, disse-lhe que ela própria não ganhava nada com isso. “Para mim, o que retiro do que faço é que é maravilhoso”.
Público, fechado ou secreto
Alertado por Emma Delmayne, o jornalista do Business Insider rapidamente concluiu que Amanda Mary Jewell não tem sido a única pessoa a aproveitar os grupos secretos do Facebook para espalhar desinformação médica.
A Visão já tinha escrito sobre a ligação de milionários como os americanos Lisa e Bernard Selz ao movimento antivacinas. Foi no início do verão, quando o Washington Post revelou que este casal tinha injetado mais de três milhões de dólares no grupo ICAN (Informed Consent Action Network). Uma pequena fortuna que serviu, entre outras ações, para financiar um filme de propaganda disfarçado de documentário e inúmeras palestras sobre a alegada relação entre a vacina contra o sarampo e o autismo.
Na altura, parecia que as redes sociais não eram as maiores culpadas. Porém, agora, à luz daquilo que o Business Insider veio relevar, pelo menos o Facebook tem de ser apontado a dedo por ajudar a disseminar essa e outras mentiras médicas. E ainda por permitir a promoção de pseudomedicamentos e “tratamentos” caríssimos, reforçou a Visão.
Tudo gira à volta dos grupos fechados e da lógica em que funcionam, concluiu Tom Porter, e o Facebook deu-lhe razão. Quando contactado pelo jornalista, a rede social fechou imediatamente uma dúzia de grupos secretos e, entretanto, anunciou que iria repensar o seu sistema de privacidade.
Por enquanto, quando alguém decide criar um grupo no Facebook pode decidir se o mesmo é público, fechado ou secreto. O primeiro é, como diz o nome, público e visível na pesquisa; o segundo é privado, mas qualquer pessoa pode procurar/encontrar o grupo, ver quem administra e pedir para aderir; quanto ao terceiro, apenas os seus membros conseguem encontrá-lo, não aparece na pesquisa, portanto só se acede a ele por convite.
Lixívia “milagrosa”
O GcMAF Oracle, grupo criado por Amanda Mary Jewell, tinha mais de sete mil membros e cada um deles pedira para aderir. Pode não parecer muita gente, mas tratando-se de um grupo secreto, percebe-se melhor o poder que tinha. Lá dentro, qualquer pessoa podia dizer-se médico ou especialista em qualquer coisa e espalhar a mentira.
É suposto os moderadores – como era o caso de Amanda Mary Jewell – garantirem o cumprimento das regras de bom comportamento do Facebook. “Mary”, como membro do GcMAF Oracle (a que pediu para aderir com o propósito de expor a pseudo-especialista em cancro), viu como neste e noutros grupos do género as pessoas podem ser persuadidas a optarem por tratamentos sem eficácia comprovada.
“Estão a permitir que as pessoas virem as costas a tratamentos com provas dadas e a irem com charlatães, e dão-lhes uma plataforma”, disse sobre o Facebook. “Estão a deixar que as pessoas morram”, frisou.
O Business Insider deu mais alguns exemplos de substâncias promovidas como medicamentos em grupos secretos no Facebook. É o caso da chamada Miracle Mineral Solution (MMS), uma suposta cura mineral e milagrosa para o autismo que não passa de uma lixívia tóxica. Em março, o site de notícias já relatara histórias de pais que partilhavam na rede social imagens de filhos com lesões causadas pela MMS, vendida através do Messenger.
Na sequência da investigação de Tom Porter, os responsáveis do Facebook decidiram fechar grupos que promoviam as duas substâncias, bem como outros ligados ao movimento antivacinas e páginas pessoais dos seus criadores. E triplicou a equipa de segurança e proteção da rede social para 30 mil pessoas.