“Durmo na campa do meu filho”. Quando os vivos também moram no cemitério

Por cima de presidentes, celebridades e dos cadáveres dos próprios filhos: milhares de pessoas formaram bairros no cemitério de Manila. “Não há fantasmas”, mas a vida é mais dura entre os mortos.

O cemitério do norte de Manila é um local de forte contraste: se por um lado, é a casa (permanente) dos mais ricos das Filipinas, desde estrelas de cinema a antigos presidentes, também é o lar dos mais pobres.

Para muitos moradores da capital filipina, que tem uma das maiores densidades populacionais do mundo, o único lugar que resta para chamarem de lar é a casa dos mortos.

Naquele que é um dos maiores e mais antigos cemitérios do país moram, além de um milhão de mortos, 6.000 a 10.000 pessoas.É uma das realidades mais cruas que vi durante anos a viajar“, disse recentemente a fotógrafa documental Sofi Prado, que foi visitar o local: “cruzámo-nos com histórias muito duras”.

Há gente que morou aqui durante toda a sua vida. Formaram bairros” no cemitério. Alguns montaram as suas tendas por cima dos túmulos, conhecendo ou não quem neles jaz.

Com moradores mortos desde 1904, mas com habitantes vivos desde os anos 50, há hoje casas de banho e wifi no cemitério, mas também comércio: veem-se mercearias, armazéns, postos de trabalho e até karaoke. Até já se formaram turmas para dar aulas às crianças locais. Mas a maioria não tem eletricidade nem água corrente.

Há quem more e tenha criado o seu negócio no cemitério há mais de 40 anos. Muitos começaram lá a viver como zeladores, contratados pelos mais ricos. É o caso de Dani, veterano no cemitério, onde “faz biscates. Montou casa entre os túmulos, protege-os e recebe dinheiro das famílias que têm parentes nos túmulos que estão sob o seu cuidado”.

O espaço continua a ser usado como cemitério — fazem-se entre 80 e 100 funerais por dia — e algumas famílias dos falecidos queixam-se da presença dos vivos, “mas não podem fazer grande coisa” sobre a situação, diz Sofi Prado.

Hoje em dia, há também quem por lá ganhe a vida a cavar sepulturas e a esculpir lápides. A reciclagem é apreciada, e também emprega muitos residentes, a troco de remuneração indigna.

“A maior parte das pessoas aqui não tem rendimentos, mas tentamos arranjar biscates para fazer face às despesas. Vendemos flores às famílias das vítimas, fazemos lápides ou construímos caixões”, contava há uns anos Elvira Miranda ao britânico The Guardian: “vivo aqui há 51 anos”, dizia a filipina de 68 anos — “e há 51 anos que tento sair”.

Apesar do ambiente mórbido, “não há fantasmas”, garante ao South China Morning Post Jocelyn De Los Santos, que mora no topo de um dos mausoléus do cemitério, onde cresceu com 10 irmãos e onde criou dois filhos. São os vivos quem dão mais problemas aos moradores: “estamos apenas a lutar contra os toxicodependentes, pessoas que podem realmente fazer algo de mau quando estão drogadas. Mas fantasmas, não há nenhum”.

A fotógrafa, que partilhou no Instagram a sua visita ao local esta semana, confirma que o cemitério filipino “é um dos lugares mais perigosos para visitar. Em muitas zonas, tivemos de nos esconder num Tuk-Tuk para que não nos vissem… não querem ninguém de fora”.

 

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Motivadas pela guerra contra a droga bem assente nas Filipinas, as rusgas policiais são comuns no cemitério nortenho. A polícia mata e enterra no mesmo local. Carmelita mora em cima da campa do próprio filho. Uma noite, “50 polícias entraram no cemitério e deram-lhe cinco tiros”, conta. “Gosto que o corpo dele esteja ao pé de mim. Está enterrado num túmulo com o meu pai. Um dia, em breve, vou morrer e gostaria de ser enterrada aqui também”.

Viver no cemitério é peculiar, mas o caso de Manila não é único no mundo. No Cairo, por exemplo, cerca de um milhão de pessoas fazem das sepulturas as suas casas devido à grave crise de habitação da capital egípcia. Sítios diferentes, os mesmos problemas.

Apesar de viverem junto a uma das maiores esquadras da polícia do Cairo, os residentes sentem-se inseguros, contam à Vice: “somos alvos fáceis para os ladrões”, explica Fatma, que se queixa que a polícia raramente responde aos seus pedidos de ajuda.

Tomás Guimarães, ZAP //

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