Vitória legal histórica deve moldar a interpretação dos direitos conjugais por toda a Europa. “Quando se é forçado a ter relações sexuais no casamento, isso é violação”.
Vitória legal histórica no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) esta quinta-feira. Uma mulher francesa viu o juiz decidir que os tribunais franceses violaram o seu direito à vida privada e familiar, ao atribuírem-lhe a responsabilidade pelo fim do seu casamento devido à sua recusa em ter relações sexuais com o marido.
A mulher — que anteriormente foi identificada como Bárbara, mas agora como H.W. — casou em 1984 e teve quatro filhos, mas após anos de uma relação tensa, iniciou o processo de divórcio em França, em 2012. O que não esperava era ser considerada culpada por “violação grave” do “dever” de fazer sexo com o marido no processo civil de divórcio litigioso.
Por ter recusado manter qualquer contacto sexual com o marido durante cerca de 8 anos, desde 2004, a francesa foi contra o “contrato de casamento”, determinou o Tribunal de Versalhes, segundo acórdão de 2019, e “violou grave e renovadamente os deveres e obrigações matrimoniais e tornando intolerável a manutenção da vida em comum”, citava na altura o jornal francês Le Parisien.
A mulher, na altura com 66 anos, levou o caso ao TEDH com a ajuda de duas associações feministas. Contestava ser considerada culpada por tal informação se tratar de uma intromissão na sua vida privada, de uma violação da sua autonomia corporal e que foram problemas de saúde e ameaças de violência por parte do marido que a levaram a não fazer sexo com ele.
O TEDH decidiu na passada quinta-feira que a decisão dos tribunais franceses impunha, de facto, uma interferência injusta na sua vida pessoal: “o Tribunal não conseguiu identificar qualquer razão suscetível de justificar esta interferência das autoridades públicas no domínio da sexualidade”, lê-se na decisão.
No entender do Tribunal, “o consentimento para o casamento não pode implicar o consentimento para futuras relações sexuais”: tal interpretação “equivaleria a negar que a violação conjugal é de natureza repreensível”.
Adaptar a lei, ao rumo da história
A decisão, que já na altura dividiu a justiça francesa, surge no contexto de uma grande reflexão em França sobre os direitos das mulheres, desencadeada essencialmente pelo caso de Gisèle Pelicot, que chocou o país e o mundo em 2024 e culminou com o seu ex-marido condenado por a ter drogado e convidado mais de 50 homens desconhecidos a violá-la.
“Espero que esta decisão marque um ponto de viragem na luta pelos direitos das mulheres em França”, afirmou a advogada de H.W., Lilia Mhissen: “é imperativo que a França, tal como outros países europeus, como Portugal ou Espanha, tomem medidas concretas para erradicar esta cultura da violação e promover uma verdadeira cultura do consentimento e do respeito mútuo.”
Embora a decisão não altere o divórcio finalizado da francesa, abre um precedente para casos futuros. Se o Código Criminal francês previa que forçar relações sexuais, mesmo entre marido e mulher, é um crime de violação, o Código Civil francês determinava que “os cônjuges devem um ao outro respeito, fidelidade, ajuda, assistência” e “obrigam-se mutuamente a uma comunidade de vida” — esta última, uma citação do artigo 215 que reportou, neste caso, reporta para uma comunhão de vida sexual, uma vez que o casamento tem como fim a procriação, escrevia o o Le Monde.
“Os tribunais vão finalmente deixar de interpretar a lei francesa através da lente do direito canónico e impor às mulheres a obrigação de ter relações sexuais dentro do casamento”, diz ainda a advogada, relativamente à decisão histórica desta semana.
O ministro da justiça francês reconheceu a decisão e expressou o compromisso do governo em alinhar a lei francesa com a evolução das normas sociais. Os legisladores já estarão a considerar alterações à definição legal de violação. “Obviamente, vamos seguir o rumo da história e adaptar a nossa lei“, disse Gerald Darmanin, citado pela Reuters.
“Traumatizada” com a decisão inicial, H.W. celebrou a vitória para os direitos das mulheres e também apelou para que a França erradique a sua enraizada “cultura da violação”.
“Ela passou 15 anos a travar esta batalha e acabou por vencer”, disse a ativista Emmanuelle Piet, diretora do Coletivo Feminista Contra a Violação: “quando se é forçado a ter relações sexuais no casamento, isso é violação”.
Espera-se agora que este acórdão venha a moldar a interpretação dos direitos conjugais e a reforçar os princípios da liberdade sexual e da autonomia do corpo em toda a Europa.