Em linha com as sugestões feitas pelos médicos no início da pandemia, pode, de facto, haver fatores genéticos que determinam o grau de severidade que uma infeção terá num indivíduo.
Aquando do início da pandemia da covid-19, e perante o elevado nível de desconhecimento que existia em relação à SARS-CoV-2 nas suas mais variadas vertentes, foram muitas as justificações apontadas para um progresso mais rápido e gravoso da infeção: género, idade, tipo de sangue, etc. No entanto, há outras opções (algumas ainda longe de seres descobertas) para justificar a diferença de sintomas e mazelas que a covid-19 pode ter em diferentes seres humanos.
Por exemplo, uma investigação científica publicada recentemente sugere que alguns indivíduos, pura e simplesmente, nasceram com uma resistência natural ao novo coronavírus, à semelhança do que acontece com o HIV ou norovírus. As premissas da estudo são, precisamente, alguns dos fatores enumerados anteriormente, ou seja, aqueles que os médicos apontaram numa fase inicial da pandemia, mas também novos, que ainda estão por descobrir.
A equipa de especialistas, no âmbito da investigação feita, sugeriu objetivos para investigações futuras, mas também providenciaram informação detalhada sobre como o trabalho foi evoluindo.
Como é sabido, os sintomas entre infetados com covid-19 podem variar desde a simples assintomalogia e a infeção aguda, na origem de pneumonias que podem ser mortais – com alguns “doentes” a curarem-se facilmente em casa, ao passo que outros têm que ser hospitalizados durante meses nas unidades de cuidados intensivos. Existe também quem ultrapasse a logo após semanas, enquanto outros indivíduos vêm-se a lidar com as consequências durante anos, estimam os médios.
O que os médicos denominam de taxas de ataques secundários – a probabilidade de uma infeção ocorrer entre as pessoas mais suscetíveis dentro de um dado grupo – podem atingir valores de 70% em alguns agregados familiares, existindo múltiplos relatos de indivíduos aguentaram com relativa facilidade a doença, ao mesmo tempo que viram familiares sucumbir. Esta realidade não é, naturalmente, fruto do acaso. Daí que os autores deste estudo se tenham virado para o material genético e os fatores que deste possam resultar.
“O nosso estudo diz respeito ao enigma, deveras intrigantes, dos seres humanos que não foram infetados com a SARS-CoV-2, apesar de terem estado expostos ao vírus de forma repetida e intensa. A nossa sugestão é que estes casos sejam “genéticos” e explicamos como pretendemos desvendar este enigma por meio da genética humana”, explicou András N. Spann, autora do estudo, ao site IFL Science.
A primeira das causas genéticas considerada pelos cientistas tem que ver com a suscetibilidade inata para o vírus. Por exemplo, uma deficiência do tipo I de interferons foi relacionada com cerca de 20% dos casos críticos de covid-19. Os interferons de tipo I consistem em proteínas que desempenham um papel importante na resposta antiviral do corpo humano, por isso, e de forma pouco surpreendente, erros nos genes que constituem estas proteínas têm sido relacionados com casos mas graves de covid-19.
Outros estudos feitos neste âmbito parecem indicar que mais do que 10% das pessoas com infeções agudas por covid-19 têm anticorpos pré-existentes contra o tipo I de interferons – o que permite afirmar que a falta de proteínas pode aumentar a suscetibilidade de um indivíduo a uma infeção mais grave.
No que concerne à resistência inata aos vírus, existem apenas três casos conhecidos e dizem respeito às infeções por plasmodium vivax, ao HIV-1 e ao norovírus. Nos três casos, os todos os mecanismos consistem em deficiências dos recetores ou coreceptores, as quais são exploradas pelo agente patogénico, de forma a permitir-lhe encontrar nas células hospedeiras.
Dando seguimento a esta linha de pesquisa, os investigadores chegaram à conclusão que os indivíduos com tipo de sangue O talvez sejam ligeiramente mais resistentes. Já os grupos A e B podem, por sua vez, desempenhar um papel determinante na infeção por SARS-CoV-2, servindo de coreceptor ao vírus.
Outros genes que podem significar uma resistência acrescida contra a covid-19 são os recetores ACE2, usados pelo próprio vírus para entrar nas células. Uma mutação rara foi encontrada em análises de laboratório, no qual o gene foi usado como guarda para prevenir a entrada da infeção – provavelmente através da redução da expressão ACE2.
Outra proteína, a TMEM441B, que é exigida para a entrada viral dos flavivírus– uma família viral que inclui a dengue, a febre amarela e os vírus Zika – pode constituir um motivo e interesse para a ciência, sugerem os autores do estudo.
O impacto direto desta proteína na covid-19 ainda está para se descoberto, mas já foi identificado como requerimento para uma infeção permissiva do vírus. Nos estudos relativos aos flavivírus, um alelo comum nos asiáticos das regiões este e sul do continente tem sido relacionada com uma capacidade reduzida de apoiar uma infeção por flavivírus.
De forma a testar estes indícios, os autores do estudo sugerem uma estratégia de quatro passos. A primeira remete para um foco num grupo de indivíduos não infetados e que pertençam ao mesmo agregado familiar que elementos com covid-19 e que tenham sintomas.
De seguida, as investigações devem centrar-se em indivíduos expostos ao vírus sem equipamento de proteção individual, depois indivíduos com testes PCR e antigéneo negativos nos momentos seguintes a uma exposição ao vírus. Finalmente, a resposta das células T – um tipo de células imune – em indivíduos considerados “resistentes” precisa de ser comparada com aqueles que estão infetados.
A equipa está, atualmente, a trabalhar nesta estratégia, com 400 indivíduos a terem sido recrutados para testes de resistência. A esperança da equipa de cientistas é que o estudo trace um caminho para o desenvolvimento de medicamentos novos que bloqueiem a infeção por SARS-CoV-2.
“O aparecimento de variantes virais parcialmente capazes de escapar à imunidade serve como aviso de que a covid-19 pode persistir no âmbito de problemas sanitários que o mundo pode afetar a longo prazo. Dada a falta de medicamentos específicos e eficazes para tratar a covid-19, a necessidade de descobrir mecanismos de resistência inata à infeção pelo SARS-CoV-2 tornou-se mais urgente do que nunca“.