A história de Lúcifer de Cagliari, o estranho santo que fundou a sua própria seita luciferiana

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Sailko / Wikimedia Commons

Detalhe do altar da capela de São Lúcifer com a inscrição que indica o local onde estão as suas relíquias

O controverso Bispo de Cagliari, cuja defesa intransigente da ortodoxia católoca gerou um conflito com a Igreja, estabeleceu uma seita semi-cismática na Sardenha — onde ainda hoje é venerado como santo.

Em 1623, trabalhadores que escavavam perto da Basílica de São Saturnino em Cagliari, Sardenha, fizeram uma descoberta surpreendente: um túmulo com uma lápide que alegava conter os restos mortais de alguém chamado Lúcifer.

Não se tratava do diabo da narrativa bíblica, mas sim de um controverso bispo católico cuja defesa zelosa da ortodoxia o levou a entrar em conflito com a Igreja e a estabelecer a sua própria seita: os Luciferianos.

A escavação foi dirigida por Francisco de Esquivel, um clérigo espanhol nascido em 1550 que tinha ascendido nas fileiras eclesiásticas para se tornar Bispo de Cagliari em 1605.

Na Sardenha, Esquivel reformou o clero local, estabeleceu a universidade e o seminário da ilha, e envolveu-se numa intensa competição com o Arcebispo de Sassari para descobrir relíquias de santos, conta o LBV.

Dois anos após o início das escavações, o Bispo Esquivel descobriu uma lápide com a inscrição “aqui jaz Lúcifer, de boa memória, arcebispo de Cagliari, primaz da Sardenha e Córsega, filho muito amado da Santa Igreja Romana, que viveu 81 anos, dia 20 das calendas de maio.”

Esquivel colocou as relíquias—provavelmente falsas —  no Santuário dos Mártires na Catedral de Cagliari, e o próprio Bispo Esquivel foi sepultado na entrada desta cripta, após a sua morte em 1624, nunca tendo cumprido o seu desejo de regressar a Espanha.

Pouco se sabe sobre a vida inicial de Lúcifer, embora os historiadores estimem que tenha nascido por volta de 290 d.C.

Aparece pela primeira vez nos registos históricos em 354 como Bispo de Cagliari, enviado pelo Papa Libério ao Imperador Constâncio II para solicitar um concílio em defesa de Atanásio de Alexandria contra a condenação pelos bispos arianos.

A controvérsia ariana centrava-se na questão de Jesus possuir naturezas humana e divina: Ário afirmava que Jesus foi criado por Deus e, portanto, não era divino, uma posição condenada no Concílio de Niceia, em 325, enquanto Atanásio defendia a doutrina da consubstancialidade, afirmando que Jesus é da mesma substância que o Pai.

Apesar dos protestos de Lúcifer, o Concílio de Arles em 353 ratificou a condenação de Atanásio. Um concílio subsequente em Milão em 355 manteve esta decisão, levando ao exílio de Lúcifer e outros dissidentes que se recusaram a assinar o decreto.

Lúcifer foi primeiro enviado para Germanicia Caesarea, atual Kahramanmaraş, na Turquia, depois para a Palestina e, finalmente, para Tebas, on Egito. Durante o seu exílio, escreveu defesas ardentes da sua posição e declarou-se disposto a enfrentar o martírio pelas suas crenças. Os exilados foram autorizados a regressar após a morte do Imperador Constâncio II em 362.

Quando Atanásio convocou um concílio em Alexandria no mesmo ano, mostrando disposição para se reconciliar com arianos arrependidos, Lúcifer recusou-se a participar.

Em vez disso, viajou para Antioquia, onde ultrapassou a sua autoridade ao ordenar um novo bispo, fraturando ainda mais a Igreja. Quando o seu velho amigo Eusébio de Vercelli tentou mediar o conflito, a teimosia de Lúcifer pôs fim à sua amizade.

Ao regressar a Cagliari, Lúcifer rejeitou a decisão do concílio de Alexandria de restaurar bispados de antigos arianos. Por volta de 370 d.C., estabeleceu uma seita semi-cismática conhecida como os Luciferianos.

Embora nunca tenha sido acusado de violar o dogma católico, a recusa inflexível de Lúcifer em aceitar arianos arrependidos de volta à Igreja rendeu-lhe críticas de proeminentes padres da Igreja, incluindo dos Santos Jerónimo, Agostinho e Ambrósio.

Os Luciferianos espalharam-se para além da Sardenha, particularmente para a Hispânia (atual Espanha), embora tenham permanecido um movimento pequeno e relativamente insignificante. Continuaram a peticionar sucessivos imperadores, insistindo que aqueles que advogavam a reconciliação com os arianos haviam traído o catolicismo.

O estatuto de Lúcifer como santo permanece controverso. Nunca formalmente canonizado, desenvolveu-se na Sardenha uma tradição de veneração a Lúcifer, criando desconforto dentro da Igreja. Alguns bispos sardos defendiam a sua santidade enquanto outros se opunham.

A Igreja de Cagliari estabeleceu 20 de maio como o seu dia festivo, mas a controvérsia subsequente levou o Papa Urbano VIII em 1621 a ordenar silêncio sobre o assunto, pendente de uma decisão oficial.

Lúcifer de Cagliari permanece uma figura paradoxal na história da Igreja—um defensor zeloso da ortodoxia católica cuja postura intransigente acabou por colocá-lo em desacordo com a própria instituição que procurava proteger.

ZAP //

1 Comment

  1. Para quem não sabe os arianos que esse Santo lutou são tipo hoje em dia os Testemunhas de Jeova, que se auto intitulam cristãos mas não são. Não acreditam na divindade de Cristo mesmo que lhes mostres na tradução da bíblia martelada deles a Tradução do novo mundo. Apenas acreditam o Jeova como Deus e Jesus como semi deus pouco ou nada relevante na teologia deles e rejeitam completamente Espírito Santo como Deus, ao ponto de escreverem sempre com letra minúscula. Mas escrevem sempre diabo com letra maiúscula. Tenho que procurar as obras escritas desse santo, fiquei com curiosidade de conhecer mais.

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