Durante quase um século, ser feio ou deficiente foi ilegal em várias cidades nos EUA

Springfield, Mass/Wikimedia Commons

Nova Iorque, no início da Guerra Civil, em 1861. Apesar de nunca ter sido aprovada, Nova Iorque elaborou uma lei semelhante às de outras cidades do país

Após a Guerra Civil, várias cidades norte-americanas aplicaram leis que proibiam pessoas deformadas ou mutiladas de ser vistas em público.

“É melhor ser bonito do que bom”.

Quando o poeta e escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) pronunciou essa frase, parece que ele estava a pensar nos Estados Unidos da sua época.

Durante a segunda metade do século XIX, várias cidades e pelo menos um estado dos Estados Unidos promulgaram uma série de leis que tornavam crime não ter certas características físicas ou ter outras características que fossem contra a estética predominante da época.

Com o tempo, essas regulamentações polêmicas, que incluíam multas e sentenças de prisão, ficaram conhecidas como “leis da feiura“.

Esconder o “desagradável”

“As chamadas ‘leis da feiura’ eram uma série de decretos municipais que proibiam a presença de pessoas com determinadas características físicas em locais públicos”, disse à BBC Mundo Susan Schweik, reitora de artes e humanidades da Universidade de Berkeley.

A primeira dessas regulamentações foi aprovada na cidade de São Francisco em 1867, acrescentou a professora norte-americana, que realizou um estudo exaustivo dessas regulamentações para seu livro The Ugly Laws: Disability in Public (As leis da feiura: deficiência em público).

A portaria da cidade californiana criminalizava qualquer “pessoa doente, mutilada ou deformada de alguma forma a ponto de se tornar um objeto nojento ou repulsivo” visto nas ruas, praças, parques e outros locais públicos.

Ao longo dos anos, cidades como Reno (Nevada), Portland (Oregon), Lincoln (Nebraska), Columbus (Ohio), Chicago (Illinois), Nova Orleans (Louisiana) ou o estado da Pensilvânia copiaram o espírito e a letra do texto ditado em São Francisco.

No caso de Chicago, uma das últimas cidades a aprovar uma regulamentação desse tipo, em 1916, o argumento apresentado pelas autoridades locais foi o de “remover” toda a “feiura das ruas”, informou o jornal local Tribune.

“Parece que a ‘feiura’ em questão se referia a objetos inanimados, como pilhas de tijolos, mas as obstruções que eles queriam erradicar eram humanas”, acrescentou Schweik.

Na época, alguns justificaram as medidas como uma forma de controlar doenças e proteger a saúde pública.

“A tese da ‘influência materna’ sugeria que, se uma mulher grávida visse alguém doente, mutilado ou deformado, ela ficaria tão impressionada que o seu bebé poderia nascer doente”, explicou.

A prova dessa crença pode ser encontrada no texto publicado em 1906 pelo clérigo americano Charles Henderson.

“O epilético é um objeto de terror, e ninguém que tenha testemunhado uma pessoa a convulsionar pode escapar da lembrança assombrosa do espetáculo e libertar completamente a sua mente do terror ou da aversão”, escreveu, ao apoiar medidas para isolar os “indesejáveis”.

No período pós-guerra

Para Schweik, o facto de essas leis terem começado a ser aprovadas dois anos após o fim da Guerra Civil (1861-1865), que deixou milhares de feridos e mutilados em todo o país, não foi por acaso.

Um elemento marcante é que muitas dessas “leis da feiura” foram apoiadas por organizações de caridade.

“Essas regras foram usadas para institucionalizar pessoas consideradas repugnantes“, disse à BBC Mundo Raquel Mangual, investigadora do Instituto de Deficiências da Temple University.

As diversas regras previam penalidades como multas e prisão para “pessoas doentes, mutiladas ou deformadas” que fossem expostas ao público.

“A consequência foi que as pessoas às quais essas ‘leis’ foram aplicadas foram forçadas a entrar em asilos ou casas de caridade. E essa era uma sentença não oficial de prisão perpétua”, disse Schweik.

Os pobres eram o alvo

Embora as “leis da feiura” parecessem ter o objetivo de perseguir determinados grupos pela sua estética, ou pela falta dela, os especialistas consultados indicaram que, na verdade, elas tinham uma finalidade diferente.

“Essas regras tinham muito pouco a ver com atratividade física e eram usadas para tirar das ruas pessoas com deficiência, sem-abrigo ou que sofriam de doenças como epilepsia”, explicou Mangual.

Guy Caruso, especialista em deficiências intelectuais e de desenvolvimento, falou em termos semelhantes.

“Pessoas sem-abrigo, deficientes ou mutiladas eram, na sua maioria, pobres, que tinham de mendigar para sobreviver e as pessoas sentiam repulsa ao vê-las nas ruas”, disse o professor da Temple University.

Mas as portarias não só procuravam esconder as pessoas consideradas “desagradáveis ou repugnantes”, proibindo-as de estar em ruas, praças ou parques, como também dificultavam o seu sustento, proibindo-as de pedir esmolas.

A regra de Chicago, por exemplo, previa multas de 1 dólar (mais de 15 euros em valores atuais) para cada infração por uma “pessoa doente, mutilada ou deformada” exibida em locais públicos.

Abrir as portas para a discriminação

Embora o número de pessoas às quais as regras foram aplicadas seja desconhecido, pois nem a polícia nem os tribunais mantiveram registos, os especialistas consultados afirmaram que o seu impacto transcendeu as vítimas.

“Essas leis faziam parte de um conjunto que se entrelaçava com um grupo de leis surgidas no final do século XIX, que procuravam controlar o tipo de pessoas que se queria permitir em espaços públicos”, disse Schweik.

O especialista alegou que as portarias acabaram por ser ligadas às leis de segregação racial aprovadas no sul dos EUA.

Mangual disse que os instrumentos também abriram as portas para a legislação eugénica aprovada por alguns estados do país no final do século XIX.

“Essas leis facilitaram a aprovação de outras leis que autorizam a esterilização de pessoas com deficiências ou doenças mentais a fim de erradicar esses grupos”, acrescentou.

Schweik admitiu que as “leis da feiura” serviam para discriminar as pessoas com deficiência, mas esclareceu que esse não era o seu objetivo principal.

“Costumo dizer que (o ex-presidente) Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) não era o alvo dessas regras. O alvo principal eram as pessoas pobres“, insistiu.

Em 1921, aos 39 anos de idade, Roosevelt sofreu de poliomielite, uma doença que o paralisou da cintura para baixo e o obrigou a usar uma cadeira de rodas pelo resto da vida. No entanto, a sua condição foi ocultada e, em certos eventos públicos, usou muletas e outros dispositivos para se manter em pé.

Morto, mas não esquecido

Com a chegada do século 20, a aplicação das “leis da feiura” tornou-se bastante incomum. Entretanto, elas não foram revogadas até a década de 1970, graças à pressão do movimento pelos direitos dos deficientes.

“Em 1970, na cidade de Omaha (Nebraska), um polícia queria prender um sem-abrigo, mas não tinha motivo para fazê-lo, porque o homem não estava a pedir esmola, bêbado ou desordeiro. No entanto, o polícia encontrou a lei sobre pessoas feias e quis aplicá-la”, disse Schweik.

“Um juiz rejeitou a alegação do polícia, dizendo: ‘Devo permitir a prisão dos filhos do meu vizinho se eles forem feios? Um jornal local publicou a história, e grupos de ativistas começaram a organizar-se para exigir a revogação da regra”, continuou.

“A propósito, a manchete usada pelo jornal: ‘Lei da mendicância só pune os feios‘ é a razão pela qual hoje conhecemos esses instrumentos como ‘leis da feiura’. Isso, apesar do facto de que a palavra feio não aparece em nenhuma delas”, concluiu.

E embora nem todas as cidades tenham revogado as suas leis, a aprovação da Lei dos Americanos com Deficiência (ADA) pelo Congresso dos EUA em 1990 tornou-as ineficazes na prática. A ADA proíbe qualquer tipo de discriminação contra pessoas com deficiências físicas ou intelectuais.

Apesar da revogação oficial das regras, os especialistas afirmam que as consequências não foram superadas.

“O espírito dessas leis ainda está arraigado no subconsciente das pessoas e das instituições e isso é visto na maneira como as pessoas com deficiência são tratadas ainda hoje, pois ainda são vistas como se fossem crianças”, disse Mangual.

Schweik também afirmou que “a cultura das ‘leis da feiura’ ainda está muito viva” e disse que o atual presidente dos EUA, Donald Trump, é um dos que contribuíram para isso.

“Trump forjou a sua carreira política no início da década de 1990 a fazer campanha contra os sem-abrigo e deficientes físicos na afluente Quinta Avenida de Nova Iorque, o que o deixou ressentido porque isso ‘degradou’ a área ao redor da Trump Tower“, lembrou.

“Hoje, em vez de decretos, as cidades estão a usar formas mais subtis de manter afastadas as pessoas que os outros consideram inestéticas, como a instalação de bancos e outros móveis de rua em praças e estações de metro ou comboio que impedem que os pedintes permaneçam por muito tempo ou durmam nesses locais”, disse.

ZAP // BBC

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