Em Cabo Verde combateu-se o colonialismo com funaná

Em Santiago, a maior ilha do arquipélago de Cabo Verde, o funaná foi um ato de insubmissão quotidiano contra o regime colonial, no tempo do Estado Novo.

O funaná não fez parte da banda sonora do movimento pela independência de Cabo Verde, mas tocar este género reprimido pelas autoridades coloniais era um ato de insubmissão quotidiano por parte dos músicos.

“Eles diziam que nós [quando] estávamos no toque de gaita, era como se o demónio estivesse lá, éramos pessoas que não tinham fé em Deus”, recorda Etalvino Preta, tocador de funaná, entrevistado por Rui Cidra, autor do livro “Funaná, Raça e Masculinidade”.

O funaná, assim como o batuco e a tabanca, eram vistos pelo regime colonial português como práticas marginais que acabariam por sofrer uma “série de medidas coercivas impostas pelas autoridades civis e também autoridades religiosas”, diz à agência Lusa o investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Estas práticas eram “entendidas como ameaçadoras da chamada boa ordem”, nota Rui Cidra, acreditando que a associação destes géneros a uma ideia de africanidade legitimou a constituição das pessoas que os praticavam como “uma população subalterna na sociedade cabo-verdiana”.

Tendo entrevistado tocadores que nasceram entre a década de 1910 e 1930, na ilha de Santiago, Rui Cidra recorda que muitos desses músicos relatavam a vigilância de párocos e catequistas, acabando muitas vezes por serem detidos pela polícia e obrigados a pagar multas.

No entanto, mesmo com um regime que oprimia aquelas práticas, os tocadores foram arranjando “estratégias de disfarce” para manter o funaná vivo.

Embriagar polícias para tocar

Como exemplo, o antropólogo diz que os tocadores iludiam as autoridades das mais variadas formas, entre as quais embriagar “a figura de autoridade local para poderem tocar durante a noite”.

As músicas, apesar de não terem um pendor político, relatavam problemas sociais e dificuldades de um povo sob um regime colonial, como a fome ou a migração forçada para São Tomé e Príncipe, para o trabalho nas roças, onde muitos tocadores arranjavam dinheiro para comprarem as suas concertinas.

Aliás, o percurso retratado na conhecida morna “Sodade” estava também presente no funaná, em que uma das suas obras mais populares, “Fomi 47”, de Codé di Dona, fala de um homem com fome que emigra para São Tomé.

Para o sociólogo cabo-verdiano Redy Wilson Lima, “Fomi 47”, mesmo que não tenha tido uma intenção contestatária na sua criação, tem “uma forte conotação política, ao falar do abandono a que as pessoas estavam votadas”.

Para Rui Cidra, o funaná não expressava qualquer projeto nacionalista, mas tinha em si uma dimensão de luta contra a opressão do regime.

Redy Wilson Lima, doutorando em estudos urbanos da Universidade Nova de Lisboa, sublinha que os tocadores, mesmo sendo presos e detidos, “tocavam na mesma”.

A relação do Estado Novo com o funaná, que tem como instrumentos centrais o ferro e a gaita (concertina), acaba por também afetar a própria história do género, que se mantém como uma prática marginal e quase circunscrita ao interior da ilha de Santiago até à independência, explica Rui Cidra.

“Há muitos cabo-verdianos que não conheciam estas práticas”, nota.

O funaná longe das elites

Gláucia Nogueira, autora do livro “Batuku de Cabo Verde”, recorda que também aquele género não subia ao planalto da Cidade da Praia, a zona central e nobre da capital, durante o Estado Novo.

Com a independência, o funaná torna-se popular, sobretudo a partir de inovações estilísticas por parte de bandas como Bulimundo, que trocam a gaita pelas guitarras elétricas e sintetizadores.

A sua popularização surge “mais ou menos” ao mesmo tempo que Ferro Gaita, que recupera a gaita no funaná e imprime-lhe um ritmo acelerado.

Funaná para sempre

Para Rui Cidra, se tocar funaná durante o Estado Novo era “um ato de insurgência” e uma “vontade de cumprir um sentimento de liberdade individual”, a postura de insubmissão mantém-se hoje, face às fraturas que ainda existem entre grupos e classes sociais, que apesar de se terem esbatido, ainda contemplam certas heranças.

“Acho que a população de Santiago teve inúmeras conquistas do ponto de vista da sua integração na nova nação, mas essas conquistas foram muito fruto da sua própria luta e do seu próprio trabalho”, nota.

Nesse sentido, se o funaná é hoje ouvido em Cabo Verde e na diáspora e ganhou estatuto de género musical nacional deve-se “à criatividade e à ação dos músicos”.

Na sua tese, as palavras de Dju di Mana, um jovem tocador que contribuiu para o trabalho etnográfico em Cabo Verde de Rui Cidra, resumem o sentimento: “Tens de falar disto: desta força, desta resistência, desta sobrevivência”.

ZAP // Lusa

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