A “Igreja no céu” é a mais inacessível do mundo, escondida numa falésia a 400 metros de altura

Aonde os crentes estão mais perto de Deus, a até 400 metros de altura, só chega quem tem mais fé. Cair seria morrer, “mas o caminho é abençoado”

Num dos primeiros bastiões do cristianismo do mundo, a fé é posta à prova na mente, mas especialmente no corpo.

O rei Ezana de Axum foi o primeiro rei a abraçar o cristianismo na Etiópia, há mais de 1500 anos. Hoje, a ortodoxia vive o mais perto de Deus possível, nos locais mais improváveis — e mais inacessíveis do mundo para rezar.

Entre mais de uma centena de igrejas “embutidas” na rocha do norte etíope, nas montanhas Gheralta, em Tigray, só uma exige escalar uma falésia de entre 300 e 400 metros de altura desde a base da montanha.

Falamos de Abuna Yemata Guh, considerado o local de culto mais inacessível do mundo e um dos mais antigos da religião cristã.

A 2.580 metros acima do nível do mar, é possível que estas igrejas tenham sido “escondidas” nas montanhas para escapar ao vandalismo islâmico da qual também são vítimas, apesar de a perseguição também ser comum por parte das autoridades e ortodoxos contra católicos e evangélicos, não dominantes no país.

Mas estas igrejas não ficam a milhares de metros acima do mar só por causa de guerras inter-religiosas. É também uma questão de sadismo, como manda a Bíblia: ao sítio onde os crentes se sentem mais perto de Deus, só chega quem tem mais fé.

Aquela igreja ortodoxa tem mais de mil anos e ainda hoje faz lá missas. E é verdade que nem todos estão à altura do desafio de ir assistir às mesmas: a jornada é, como se costuma dizer por cá, “imprópria para cardíacos”.

A chegada ao local depende de uma caminhada de duas horas, geralmente feita descalço — uma questão de respeito.

Na fase final do caminho, não se pode olhar para baixo: cair seria morrer em qualquer outro passeio estreito e inclinado como aquele, mas aqui “o caminho é abençoado”, disse o padre Assefa, que faz o caminho todos os dias há mais de 50 anos, ao The Washington Post, que esteve no local em 2019.

Além dos homens, mulheres grávidas, bebés e idosos fazem a caminhada até lá para ir à missa. Apesar do perigo, “nunca morreu ninguém. O nosso santo padroeiro salva aqueles que caem com o seu vento e eles são devolvidos à saliência a meio do caminho”, diz com toda a certeza o padre, cujos pai e avô já eram também líderes religiosos em Abuna Yemata Guh.

“Ninguém caiu até agora graças à proteção dos nove santos que moram nestas montanhas e acompanham os padres pelo caminho”, confirma o padre Haylesilassie Kahsay, que faz a mesma caminhada todos os dias, à BBC.

Charliefleurene/Wikimedia Commons

Padre Haylesilassie Kahsay

Kahsay referia-se ao grupo de nove missionários do século V que levou o cristianismo ao que é hoje a Etiópia. Vieram da Síria, embora haja historiadores que defendem que vieram de Constantinopla ou Roma. Abuna Yemata era um dos Nove, e acredita-se que foi ele quem escolheu, algures no século V ou VI, o pico de Guh, que como um dedo aponta para o céu, para fundar e esculpir a igreja que ficou até hoje o seu nome.

Ir até ao seu encontro “é muito difícil, mas é possível”, garante o padre: “não tenho medo”. Sem sapatos ou cordas, chega à Igreja bem cedo e passa o dia a ler livros antigos — até porque “não há ninguém com quem conversar” naquele local sagrado encravado numa rocha, no meio do nada.

Já na Igreja, acima do piso alcatifado, as pinturas espalham-se pelo teto. “Parecem pertencer à segunda metade do século XV”, segundo um estudo de 2016 que se baseia no tema, estilo e iconografia observados no local.

Foram feitas com gordura animal e outros pigmentos naturais sobre o arenito. Retratam as personagens da Bíblia e contam as suas histórias. Estão também em perfeita condição: foram preservadas ao longo de centenas de anos graças ao clima árido, seco da região.

Entre as rochas, pelo caminho, ossadas de gerações de padres deitam-se à vista de todos.

A cúpula remonta ao século VI. Sinos, feitos de pedra, são tocados todos os dias e ecoam pelo campo fora. Ao pôr do sol, o padre tranca com um humilde cadeado a porta da Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo, que fez parte da Igreja Ortodoxa Copta, até 1959. Depois, são duas horas de caminhada de regresso a casa.

“Fico feliz a ler o meu livro o dia inteiro. Comunica-se com Deus e partilha-se os segredos com Ele. A mente fica livre e feliz”, confessa Kashay à BBC.

“Quando venho aqui, perco tudo. Sinto-me livre. Não é como nenhum outro lugar. É um lugar especial”, diz o filho do padre, Atsbha, citado pelo blogger Joey Tyson na revista Suitcase.

oscarespinosa/DepositPhotos

Padre exibe Bíblia de Abuna Yemata Guh.

Tomás Guimarães, ZAP //

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