Parlamento
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Entre Janeiro e Maio, esse ano mudou os direitos das mulheres em Portugal. Maria Van Zeller deixou uma ideia curiosa.
Hoje em dia parece uma anedota mas, naquela altura, foi um avanço significativo para as mulheres portuguesas, mais concretamente no direito ao voto.
O primeiro registo de que há, neste assunto, remonta a 1822. Há mais de 200 anos, enquanto o Brasil declarava a sua independência, o deputado Borges de Barros apresentou uma proposta: poderiam votar todas as mulheres com seis filhos legítimos.
E apresentou um argumento forte: às mães não se deve negar “o direito de votar naqueles que devem representar a Nação”, pois que ninguém dá mais ao país do que “quem lhe dá os seus cidadãos”.
Mas essa proposta nem foi admitida à discussão pelo Parlamento.
Outro deputado, Borges Carneiro, avisou: “Trata-se do exercício de um direito político e deles são as mulheres incapazes. Elas não têm voz nas sociedades políticas: mulier in ecclesia taceat, diz o Apóstolo” – ou seja, “a mulher deve ficar em silêncio na igreja”, cita o site do Parlamento.
Uma excepção
Quase 100 anos depois, uma mulher conseguiu votar.
Em 1911, logo na primeira votação depois da implantação da República, estreante foi Carolina Beatriz Ângelo, que aproveitou um buraco na legislação portuguesa: dizia que podiam votar todos os chefes de família que soubessem ler – esta médica era viúva, e por isso, chefe de família… Foi votar.
Esse desvio foi logo travado porque, a partir daí, a lei era clara: só podem votar homens.
Primeiras aberturas
Foi já sob o regime do Estado Novo, em 1931, que ficou definido que algumas mulheres podiam votar: tinham que ter frequentado o ensino superior ou eram, lá está, chefes de família – viúvas, divorciadas ou judicialmente separadas de pessoas e bens com família própria e as casas cujos maridos estejam ausentes nas colónias ou no estrangeiro. E com mais uma alínea importante, que já lá vamos.
Logo a seguir, em 1933, foi incluída na lista a “mulher solteira, maior ou emancipada, quando de reconhecida idoneidade moral, que viva inteiramente sobre si e tenha a seu cargo ascendentes, descendentes ou colaterais.”
E as casadas?
Até que, em 1946, o deputado Pinto Coelho tentou mudar isso: defendeu no Parlamento que as mulheres casadas também deveriam votar.
É que naquela altura uma mulher, se fosse casada, não tinha autorização para votar. Porquê? Primeiro, porque “o homem é que sabe” destes assuntos da política; segundo, porque poderia causar conflito familiar se a esposa tivesse preferência política diferente da do marido – e a família é sempre prioridade.
A proposta de Pinto Coelho foi apresentada em Janeiro; em Março, foi debatida no Parlamento.
Uma das alterações propostas estava relacionada com dinheiro. É que o decreto em vigor na altura tinha mais uma alínea sobre as “chefes de família”: teriam de pagar impostos de 100 escudos, no mínimo.
O diploma que foi a debate em São Bento naquela altura previa o direito de voto das mulheres casadas – desde que soubessem ler e escrever e cuja contribuição predial própria ou do casal fosse de 200 escudos, no mínimo. Para defender as “pequenas unidades familiares, assentes numa base patrimonial, criada tantas vezes pelo longo trabalho de gerações, sempre continuadas e mantidas pelo espirito na unidade familiar”.
Sobre a questão apresentada pelas Comissões de Legislação e Redação e de Política e Administração Geral e Local, sobre a eventual desunião familiar por causa do voto da mulher, Pinto Ribeiro lembrou que o voto é secreto: “Não havendo choque, não há desunião”. Além disso, mesmo sem a mulher a ir à urna eleitoral, os desentendimentos podiam surgir sempre em casa, em conversas.
Há uma alínea que não cai: o requisito de saber ler e escrever. Porque é preciso ter instrução e cultura para “o mínimo de consciência indispensável para tomar uma decisão importante como é o exercício do direito do voto em eleições gerais.”
Outro deputado que queria ver as mulheres portuguesas a votar era Mendes Correia: “As mulheres são seres humanos e seres pensantes como os homens”.
Visão de uma deputada
Claro que, lembra o Parlamento, Maria Van Zeller também falou.
A deputada começou por esclarecer que não estava a reivindicar para a mulher mais direitos para que esta passe a “considerar-se em absoluta igualdade, melhor, em absoluta equiparação com o homem ou até, numa exagerada tentativa de emancipação, pudesse ter a veleidade de querer suplantá-lo“.
Essa intenção seria uma contradição com o “respeito que a mulher se deve a si própria (…) e com o espírito da política de regresso da mulher ao lar, tão necessária e vantajosa para que a família seja uma célula social verdadeiramente digna desse nome.”
Maria Van Zeller queria mais direitos políticos para a mulher porque, assim, a mulher seria “defensora de si própria, do santuário da sua casa e dos legítimos interesses de todos os membros da sua família.”
A deputada achava que, comparando com os votos das solteiras, as mulheres casadas seriam mais úteis para o Estado: é que as casadas têm normalmente “personalidade mais definida e responsabilidades mais pesadas”, o que lhes permite “maior segurança” e “mais consciência e ponderação”.
Com tudo isto, proposta aprovada. Com os requisitos já mencionados. A lei foi publicada, por coincidência (ou não), no dia 28 de Maio de 1946, precisamente 20 anos depois do golpe de Estado que viria a originar o Estado Novo.