No debate dos vices, Vance e Walz voltaram a um normal que até já parece estranho

Sarah Yenesel / EPA

JD Vance e Tim Walz cumprimentam-se no debate dos vices-presidentes

O debate entre JD Vance e Tim Walz ficou marcado por um tom cordial que até já parece estranho na política norte-americana. No final, ficou tudo empatado.

Foi um confronto surpreendente para quem esperava os insultos e o “sangue” que têm marcado os debates nos Estados Unidos nos últimos anos.

O embate entre os números dois das campanhas de Donald Trump e Kamala Harris, JD Vance e Tim Walz, respetivamente, assemelhou-se quase a uma viagem no tempo a um “normal” que deixou de o ser, num ambiente morno e inesperadamente civilizado, com os candidatos mais focados em divergências políticas do que em ataques pessoais e a criticar mais Trump e Harris do que um ao outro.

Houve até momentos em que houve uma genuína empatia entre os dois candidatos. Quando Walz partilhou uma história pessoal sobre o seu filho adolescente ter testemunhado um tiroteio num centro comunitário, Vance respondeu: “Sinto muito por isso. Cristo tenha piedade.”

“Gostei do debate desta noite e acho que houve muitos pontos em comum aqui”, disse Walz nos seus comentários finais. “E tenho empatia por quem às vezes tropeça nas palavras.” “Eu também”, respondeu Vance.

Walz critica Trump nas alterações climáticas

Transmitido pela CBS a partir de Nova Iorque, o debate arrancou com uma questão sobre se apoiariam um ataque de Israel ao Irão, com ambos os candidatos a acabar por fugir à pergunta.

Walz começou com uma pequena gaffe — algo que se sucedeu algumas vezes ao longo do debate —, confundindo Israel com o Irão. No entanto, o Democrata frisou a importância “fundamental” de Israel se “poder defender”.

O Governador do Minnesota apelou ainda ao fim da crise humanitária em Gaza e salientou a importância de uma “liderança estável” para esse fim. “O mundo viu no palco daquele debate há algumas semanas que um Donald Trump com quase 80 anos a falar do tamanho da audiência nos seus comícios não é aquilo de que precisamos agora”, atacou.

JD Vance adotou um tom mais agressivo, culpando a administração de Joe Biden por ter criado uma imagem de fraqueza dos Estados Unidos no Irão. “Donald Trump conseguiu trazer estabilidade ao mundo, ele fê-lo ao criar uma dissuasão eficaz. As pessoas tinham medo de pisar as linhas”, respondeu o Senador do Ohio.

As alterações climáticas também foram discutidas, no rescaldo da destruição causada pelo furação Helene. Ambos os candidatos deixaram as suas condolências às vítimas, mas o seu consenso ficou-se por aqui.

JD Vance descreveu a crise climática como um “problema muito importante“, mas recusou responder diretamente quando foi questionado sobre se concorda com Donald Trump, que considera que as alterações climáticas são uma “farsa”.

“As alterações climáticas são reais; reduzir o nosso impacto é absolutamente crítico”, respondeu Tim Walz, que atacou ainda os comentários do antigo Presidente no início deste ano, quando Trump minimizou o impacto das alterações climáticas porque criariam “mais propriedades à beira-mar”.

Imigração aquece o debate

Um dos (poucos) momentos mais tensos no debate nem foi propriamente entre os candidatos, mas sim entre JD Vance e os moderadores. Em causa estava um dos assuntos que marcou o confronto entre Trump e Harris, quando o ex-Presidente afirmou que os imigrantes haitianos estavam a comer os animais de estimação da população de Springfield, no Ohio.

O tema foi trazido à discussão por Walz, que atacou Vance por repetir esta mesma conspiração que já foi desmentida e lembrou que a crise migratória só se agravou porque Donald Trump telefonou aos seus aliados no Congresso e os pressionou a chumbar uma lei bipartidária que iria reformar a patrulha na fronteira de forma a evitar que Biden conseguisse uma vitória política.

“Eu acredito que o Senador Vance quer resolver isto, mas ao ficar ao lado de Donald Trump e ao não trabalhar em conjunto para encontrar uma solução, isto torna-se um ataque, e quando se torna um ataque, só serve para desumanizar e vilanizar outras pessoas”, considerou Walz.

“Em Springfield, no Ohio, e em comunidades por todo o país, temos escolas sobrecarregadas, hospitais sobrecarregados, habitação que não é acessível por causa dos milhões de imigrantes ilegais que trouxemos para competir com os americanos pelas casas escassas que há”, respondeu Vance, sem se referir à acusação de que os imigrantes comem cães e gatos.

A moderadora Margaret Brennan interviu neste momento para corrigir Vance, clarificando que a maioria dos imigrantes do Haiti que vivem em Springfield estão nos Estados Unidos legalmente.

“As regras eram de que vocês não iam fazer fact-checking e já que me estão a fazer fact-checking, acho importante que as pessoas saibam o que se está a passar”, ripostou Vance. Este momento caótico foi resolvido pela CBS, que cortou temporariamente os microfones de ambos os candidatos.

Vance justifica críticas passadas a Trump

Os moderadores questionaram também JD Vance sobre o seu passado com Donald Trump, visto que em 2016 o Senador teceu várias críticas duras ao ex-Presidente, comparando até a Adolf Hitler.

“Tenho sido muito aberto sobre o facto de que estava errado sobre Donald Trump. Donald Trump cumpriu com os americanos: aumentou os salários, criou uma economia que funcionava para os americanos normals e aumentou a segurança na fronteira no sul — fez muitas coisas que eu, francamente, achava que ele não iria conseguir”, justificou. Vance disse ainda que tem de “ser honesto” quando “se fala mal”.

A recusa de Trump em reconhecer a vitória de Biden em 2020 também veio à baila, com Walz a mostrar-se chocado com a recusa de Vance em admitir que Donald Trump perdeu as eleições.

“Estou bastante chocado com isto. Ele perdeu a eleição. Isso não está em debate”, afirmou Walz, depois de perguntar diretamente a Vance se reconhecia o resultado, sem resposta positiva. “Foi a primeira vez que um presidente tentou subverter uma eleição justa e transição do poder”, continuou, criticando a “história revisionista” que Vance estava a tentar fazer.

“Algo que fazem muito é dizer que se Donald Trump se tornar Presidente, todas estas consequências terríveis vão acontecer. Mas, na verdade, Donald Trump já foi Presidente e a inflação era baixa e o dinheiro levado para casa era maior”, defende.

“Trump dá cortes de impostos aos bilionários”

Uma parte significativa do debate centrou-se em questões económicas. Vance defendeu o plano económico de Trump, alegando que resolveria a crise do custo de vida “no primeiro dia” do seu mandato.

A certa altura, o número dois de Trump até elogiou brevemente as medidas defendidas por Kamala Harris, admitindo que “algumas delas parecem muito boas”, mas rapidamente prosseguiu ao ataque, lembrando que Harris já teve quatro anos na Casa Branca como vice de Biden para concretizar essas propostas.

Walz enfatizou como a agenda de política económica de Harris está focada na classe média, lembrando promessas como a construção de 3 milhões de novas casas em todo o país e subsidiar o pagamento de entrada para quem compra uma casa pela primeira vez.

O Governador Democrata também atacou as políticas fiscais de Trump. “Se quer que os bilionários obtenham cortes de impostos, Trump é o seu candidato”, disse.

JD Vance tenta salvar os Republicanos no aborto

JD Vance aproveitou a ocasião do debate para tentar reformular a imagem dos Republicanos na questão do aborto, que é um dos seus principais calcanhares de Aquiles com os eleitores.

“O meu partido tem de fazer muito melhor para recuperar a confiança do povo americano neste tema em que, francamente, eles não confiam em nós“, afirmou, frisando que, no entanto, concorda com Donald Trump de que a decisão sobre o aborto deve caber a cada estado.

Walz respondeu afirmando que “as coisas funcionavam melhor quando Roe v. Wade vigorava” e acusou Vance de defender políticas que Donald Trump ainda não prometeu, como as proteções aos tratamentos de fertilização in vitro ou o apoio às famílias que compram a primeira casa.

“No Minnesota, o que fizemos foi restaurar Roe v. Wade. Garantimos que são as mulheres que decidem sobre os seus cuidados de saúde. Isto é um direito humano básico. Já vimos a mortalidade maternal disparar no Texas. Isto é sobre saúde“, realçou o candidato Democrata.

Quem ganhou?

No final, muitos analistas consideraram que há razões para declarar ambos os candidatos como vencedores e como derrotados.

“Achei um debate muito equilibrado”, disse à Lusa a cientista política Daniela Melo, professora na Universidade de Boston. A politóloga indicou que, ao contrário do que aconteceu com os candidatos presidenciais, foi um debate com políticas.

“Walz começou nervoso mas depois recuperou”, notou a especialista, que classificou o debate como “um empate”.

Embora ambos tenham sido cautelosos com as palavras, Daniela Melo considerou que o Republicano Vance se mostrou mais seguro do princípio ao fim e que foi depois do intervalo que Walz conseguiu ter muitos momentos fortes.

“Ambos fizeram o que tinham de fazer: não prejudicaram o candidato [presidencial], mostraram as diferenças em políticas, e não cometeram gafes graves”, sintetizou.

Adriana Peixoto, ZAP //

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