Pode a vítima de um crime violento identificar o agressor pelo olfacto? Pode a memória olfactiva da vítima ser mais assertiva na identificação do criminoso do que a auditiva ou mesmo do que a visual?
Sim, pode. Laura Alho, investigadora do Laboratório de Psicologia Experimental e Aplicada (PsyLab) da Universidade de Aveiro (UA), apresentou os primeiros resultados experimentais a nível mundial que envolvem a identificação de odores corporais em contextos de crimes violentos.
A investigadora descobriu que cheirar odores de criminosos ajudou os participantes no estudo a identificar correctamente 75 por cento dos agressores.
Uma percentagem que deixa à distância, por exemplo, os 45 a 60 por cento das identificações correctas alcançadas em alguns dos tradicionais testemunhos oculares.
Publicado na revista Plos One, o trabalho de Laura Alho, orientado por Sandra Soares e Carlos Fernandes da Silva, investigadores do PsyLab, e por Mats Olsson, cientista do Instituto Karolinska, na Suécia e um dos maiores especialistas mundiais do olfacto, envolveu a participação de 80 voluntários aos quais foram apresentados filmes reais de cenas de crime recolhidos por câmaras de segurança e de viaturas policiais.
Durante o visionamento dos filmes os participantes foram expostos continuamente a um dos odores corporais, previamente recolhido pelos investigadores entre outros 20 voluntários, com a informação de que este pertencia ao agressor envolvido na cena do crime.
O trabalho da investigadora envolveu depois, num segundo estudo, os procedimentos usados em trabalhos sobre testemunhos oculares, nomeadamente a presença ou ausência de odor-alvo nos alinhamentos de amostras dadas a cheirar aos voluntários, a informação dada ao participante de que o odor podia estar ou não presente no alinhamento e a administração dos alinhamentos duplamente cega, isto é, nem participante nem investigador sabiam qual era a condição que estava a ser realizada.
Quando questionados sobre a qual dos cinco odores estiveram sujeitos durante o visionamento dos filmes, a grande maior parte dos participantes sujeitos a imagens de crime acertou no cheiro em causa.
“Os resultados revelaram que, quando o odor alvo estava presente no alinhamento de cinco odores dados a cheirar aos participantes, o acerto na identificação foi de 75 por cento”, afirma Laura Alho.
A investigadora adianta que “quando o odor estava ausente, verificou-se uma grande percentagem de falsos positivos, sugerindo que o testemunho olfactivo parece funcionar melhor quando o odor-alvo está presente no alinhamento”.
Um cenário que, de resto, acontece quando o criminoso está presente nos alinhamentos policiais criados para a vítima identificar o agressor.
Testemunho olfactivo pode ser judicialmente relevante
De facto, aponta Laura Alho, “a literatura científica demonstra que, apesar de o testemunho ocular ser amplamente considerado em tribunais de todo o mundo, sendo conhecido como a prova rainha, a verdade é que 75 por cento dos indivíduos condenados através de testemunhos oculares foram-no injustamente”.
Em relação à falibilidade do testemunho auricular, esta “é alta mas ainda não está bem estabelecida”.
Considerando este panorama, aponta a investigadora, “não parece que o testemunho olfactivo venha a ser aquele que permita, por si só, chegar a um veredicto correcto”.
No entanto, adianta, “se vier a ser comparado com outras modalidades sensoriais e se se vier a provar cientificamente que tem menos falsas identificações, será certamente relevante em contexto judicial”.
Olfacto desencadeia memórias fortes
Tão descurado em favor da visão e da audição, diz a cientista, “o olfacto reveste-se de grande importância, uma vez que é através dele que nos afastamos de potenciais perigos, seja comida envenenada ou fora da validade, fumo ou produtos tóxicos, que estabelecemos as nossas relações interpessoais e que regulamos o humor, pois fragrâncias agradáveis provocam um humor positivo e fragrâncias desagradáveis têm o efeito oposto”.
Além disso as ligações neuroanatómicas que este sentido tem são peculiares.
“O sistema olfactivo tem ligação directa a estruturas do sistema límbico, como a amígdala e o hipocampo, que são estruturas relacionadas com as emoções e a memória, respectivamente”, explica Laura Alho.
Essa ligação é, por isso, “crucial e justifica porque é que as memórias evocadas através dos odores são mais vívidas e fortes do que as memórias evocadas por outras pistas sensoriais”.
E isso, garante a investigadora, “também é importante considerar em contextos forenses, onde as emoções negativas e as memórias das vítimas ou testemunhas de um crime devem ser consideradas”.