Mistério secular da cor dos cucos hepáticos desvendado por cientistas da UP

A variação natural característica das espécies encontra-se, por vezes, restrita a um só sexo, criando um enigma para o qual os cientistas há muito procuram resposta.

Um novo estudo, conduzido por um consórcio internacional coliderado por investigadores do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, aplicou ferramentas de genómica de nova geração para estudar um mistério da natureza com mais de 200 anos – a fêmea de cuco “hepática”.

O estudo, publicado a semana passada na Science Advances, revela a razão genética que explica o facto de fêmeas de diferentes espécies de cucos possuírem cores muito distintas.

Em 1788, o naturalista sueco Anders Sparrman, discípulo do famoso Lineu, descreveu uma variedade de cucos arruivados à qual chamou “cuco hepático”, e que considerou tão distinta dos habituais cucos cinzentos que a catalogou como uma nova espécie de ave.

Ao longo dos séculos seguintes, tornou-se claro para os naturalistas que os cucos hepáticos eram apenas uma variedade colorida do cuco-canoro europeu mais comum (Cuculus canorus), mas com uma particularidade: enquanto os machos de cuco são sempre cinzentos, as fêmeas podem ser ou cinzentas (semelhantes aos machos), ou ser da variante arruivada, apelidada “hepática”.

Esta descoberta tornou-se mais intrigante quando se descobriu que outras espécies de cuco, para além do mais famoso cuco-canoro europeu, também tinham a mesma variação cinzenta-ou-hepática restrita às fêmeas.

A cor é essencial para o estilo de vida parasítico dos cucos: a fêmea dispõe apenas de segundos para pôr os seus ovos nos ninhos de outras aves; para o fazer, o seu dorso cinzento e o peito barrado mimetizam a cor de aves de rapina como o gavião, afugentando temporariamente o hospedeiro.

Os cientistas têm-se por isso debatido com várias questões: qual é a razão para esta cor alternativa, porque é que apenas as fêmeas são variáveis, e porque é que tantas espécies de cucos mostram esta variação?

“As diferenças de aspeto entre indivíduos de sexos diferentes são comuns em animais, mas variação que é restrita a um sexo é muito menos comum” explica Miguel Carneiro, investigador principal no BIOPOLIS-CIBIO e um dos autores do estudo.

Um exemplo é a perda de cabelo com a idade, que afeta alguns homens e outros não, mas que não afeta as mulheres. Exemplos como este não são habituais, em particular em espécies selvagens, por isso esta oportunidade de estudar a variante hepática do cuco foi muito aliciante”, acrescenta o investigador.

A chave está numa mutação com  1 milhão de anos

“Nós começamos por estudar uma população de cucos da Hungria na qual as fêmeas hepáticas coexistem com fêmeas cinzentas,” descreve Cristiana Marques, coautora principal do estudo e estudante do doutoramento em Biodiversidade, Genética e Evolução da Faculdade de Ciências da U.Porto, a desenvolver o seu projeto no BIOPOLIS-CIBIO.

Depois de os cientistas terem descodificado os genomas dos cucos, encontraram algo estranho: as fêmeas cinzentas e hepáticas têm um perfil genético comum, tão semelhantes como qualquer vizinho.

“No entanto, quando olhamos para os cromossomas sexuais, vimos que, no cromossoma W, que é um cromossoma específico das fêmeas de aves, eram tão diferentes que parecia que estávamos a olhar para duas espécies distintas”, explica a investigadora.

Será que as outras espécies de cuco poderiam ajudar a resolver esta questão? Os investigadores focaram-se, de seguida, no cuco-oriental, uma espécie asiática na qual as fêmeas também por vezes são da variante hepática.

Quando consideraram a informação genética das duas espécies, a história das fêmeas hepáticas tornou-se mais clara.

“Reconstruímos a árvore evolutiva destes cucos e descobrimos que, ao contrário do resto do genoma, no cromossoma W o parentesco é maior consoante a cor da fêmea”, explica, por sua vez, Pedro Andrade, também investigador no BIOPOLIS-CIBIO e coautor do artigo.

“Ou seja, uma fêmea de cuco-canoro hepática tem um W mais semelhante ao de uma fêmea hepática de cuco-oriental, do que o da fêmea cinzenta da mesma espécie”, detalha o investigador.

“Para chegar ao fundo da questão, testámos se esta partilha de variação ocorria devido ao acaso, por hibridação, ou se a variação era tão antiga que precedia as espécies atuais”, acrescenta.

“E os nossos dados sugerem que esta variação é efetivamente muito antiga. A mutação original ocorreu provavelmente há cerca de um milhão de anos, antes do aparecimento do cuco-canoro e do cuco-oriental atuais, e tem sido passada geração após geração à medida que as espécies evoluíram”, explica Cristiana Marques.

De acordo com a equipa, este é um excelente exemplo de como, por vezes, diferentes variedades da mesma característica podem ser vantajosas, em contraponto à visão mais clássica da evolução na qual uma variante se sobrepõe às outras e leva a mudanças nas populações ao longo do tempo.

Segundo Miguel Carneiro, “os resultados demonstram como é que variação restrita a um sexo pode ser determinada pelos cromossomas sexuais, o que à primeira vista parece intuitivo, mas que surpreendentemente até agora tinha sido difícil de demonstrar”.

Para os cucos, manter duas formas diferentes numa população poderá impedir os hospedeiros dos ninhos de aprenderem a distinguir as fêmeas das aves de rapina que mimetizam, salvaguardando a espécie.

Neste momento prosseguem esforços para demonstrar se estas cores têm facilitado o estilo de vida parasítico dos cucos ao longo da sua evolução.

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