Moradores contestam o ambiente de excessos e barulho até de madrugada. Bares e discotecas garantem que “a culpa não é deles”.
“Costumo juntar-me com os meus amigos na rua, a ouvir música e a beber. É algo que faço já há algum tempo, mesmo antes da pandemia”, diz Rita Matos, sentada num dos muitos bancos do Jardim da Cordoaria, no Porto. É quase meia-noite.
Rita tem 20 anos e é estudante universitária. Com ela estão mais amigos, também estudantes, que se foram reunindo ali ao longo da noite. Entre eles está Mariana Afonso, que se junta à conversa e explica por que razão também ela sai para a rua: “Às vezes, não me apetece ir a uma discoteca e aqui posso escolher o dinheiro que gasto. Também venho quando não quero chegar muito tarde a casa, já que numa discoteca chego sempre mais tarde”.
“Há alturas em que me apetece ir a uma discoteca, mas há outras em que prefiro ficar só com os meus amigos neste ambiente. É um sítio onde estão muitos universitários e encontra-se muita gente”, acrescenta Rita.
Seja pelo ambiente, pelo dinheiro que poupam ou pela facilidade de acesso às bebidas, são muitas as razões indicadas pelos jovens para encher as ruas do Porto à noite.
A prática, que já é frequente há vários anos, intensificou-se durante a pandemia, já que os estabelecimentos de animação noturna estiveram múltiplas vezes fechados por longos períodos, devido às restrições da pandemia de Covid-19.
Miguel Silva, estudante de Engenharia, costuma ir para cafés perto da sua faculdade ou para as ruas “com bares e bebidas”. Na sua opinião, as discotecas têm muita gente, os consumos são mais altos e “obrigam logo a dançar”. Deste modo, não gosta de frequentar estes estabelecimentos e prefere ir para a rua ou para um bar ou café com amigos.
“Como nas discotecas tem de se pagar para entrar, sinto que não vale esse valor e depois não se pode sair. Se estás na Cordoaria, a bebida é mais barata, podes conviver, conhecer pessoas e costuma haver música. Há grande liberdade de movimento e podes-te juntar onde quiseres com os teus amigos”, refere.
Miguel Pereira estuda Desporto e é outro jovem que encontramos, de copo na mão, ao lado da Adega Leonor, um estabelecimento muito conhecido por quem frequenta a movida da Invicta.
Junta-se todas as semanas com um grupo de amigos na zona da Cordoaria e costuma fazê-lo quando procura um ambiente mais tranquilo, ou antes de sair para uma discoteca ou bar, um conceito a que os jovens chamam de “pré”.
Apesar de gostar de frequentar estabelecimentos noturnos, admite que aí gasta muito mais dinheiro. “Na última vez que fui a uma discoteca, gastei quase 45 euros. Quando vou para a Cordoaria gasto cerca de 10, então, poupo mais”, referiu.
Rita Matos concorda e também refere este aspeto: “Na discoteca temos de pagar sempre a taxa de entrada, enquanto aqui até posso trazer bebidas de casa. Não é com a intenção de poupar dinheiro que venho, mas também ajuda.”
O “problema” do barulho até de madrugada
Os constrangimentos associados a estes ajuntamentos são contestados pelos moradores, que se queixam do ambiente de excessos e barulho até de madrugada. Seja como for, as aglomerações continuam, sem que os que nela participam pensem demasiado nos efeitos provocados.
“Para ser sincera, nem sequer penso no barulho que faço”, afirma Rita Matos. “Como esta zona é frequentada por tanta gente e há sempre tanto barulho, isso nem me passa pela cabeça, porque imagino que seja o propósito do sítio”, complementa Mariana Afonso.
As duas amigas costumam sair à noite e frequentam, sobretudo, a zona das Galerias de Paris e os jardins da Cordoaria, sítios onde habitualmente há “música e barulho” à noite. Por essa razão, nunca pensaram que o ruído pudesse ser um “problema”.
Joana Araújo, sentada com dois amigos mais à frente, não conhece Rita nem Mariana, no entanto, partilha da mesma opinião. “Para ser honesta, na Cordoaria não reparo muito no barulho que estou a fazer”. Joana explica porquê: “Acho que todos entramos no ambiente em que estamos animados, a ouvir música e a falar alto, então, acabamos por fazer barulho”.
Em conversa com o JPN e questionadas sobre a existência de moradores nas zonas que frequentam quando saem à noite, acabaram por chegar à mesma conclusão. “Não faço ideia se há muitos moradores ou não, mas acredito que haja alguns. Uma pessoa esquece-se que podem morar aqui pessoas e que pode ser incomodativo”, refere Joana Araújo.
“Nunca pensei que vivessem aqui pessoas. Se viverem o barulho é mesmo um problema, porque é muito chato para os moradores”, admite Rita Matos.
A insegurança e a falta de policiamento nas ruas
Entre copos e risos trocados com amigos, o ruído nem sempre cruza a mente dos jovens. A segurança, por outro lado, é uma preocupação que se instala, seja pelas ruas vazias e escuras que os guiam até casa no final da noite, ou pelas histórias “preocupantes” que correm nas redes sociais.
Miguel Silva, Miguel Pereira, Rita Matos e Mariana Afonso são alguns nomes dos muitos jovens que associam a noite a perigo.
“Já vi um rapaz a ser assaltado mesmo à minha frente, nos jardins da Cordoaria”, conta o estudante da FEUP, Miguel Silva, que considera importante haver “mais polícias a patrulhar as ruas”, numa altura em que as situações de violência “têm vindo a aumentar”, na sua perceção.
Miguel Pereira segue o mesmo raciocínio e, apesar de nunca ter presenciado uma situação parecida, também sente que “há cada vez mais violência” nas ruas do Porto, queixando-se que “raramente vê polícias”.
Mariana Afonso, por outro lado, diz sentir-se “mais segura” quando está no “centro” das zonas mais frequentadas, onde vê frequentemente polícias. No entanto, sente que o mesmo não acontece quando se afasta para “as outras ruas à volta”. “Acho muito perigoso”, desabafa.
A amiga Rita Matos conta que, desde que sai à noite no Porto, nunca viveu ma situação em que se tivesse sentido em “perigo”, mas sabe de muitas histórias e relatos de “assaltos e não só”, que a deixam insegura, sobretudo pela “falta de policiamento”. “Raramente vejo polícias na rua e sinto falta dessa proteção”, afirma.
Mariana Afonso e Rita Matos contam ainda que são “incapazes” de regressar para casa sozinhas. “Chamamos sempre um Uber para voltar para casa, porque temos medo de andar sozinhas na rua”, dizem.
“Temos aqueles autocarros de hora em hora que passam de madrugada, mas quase nunca usamos. Não nos sentimos seguras a fazer o caminho até à paragem, só se estivermos acompanhadas por um grupo de amigos. O pior é termos que esperar lá sozinhas”, acrescenta Rita.
Rita Matos e Mariana Afonso consideram importante aumentar o policiamento nas ruas do Porto, para que, desta forma, todos se consigam sentir seguros e “sem medo” de sair à noite.
A movida do Porto: as queixas e a reavaliação das regras da noite
Questões como a falta de segurança ou o barulho são dos principais problemas associados à vida noturna. O barulho, especialmente, tem sido motivo de elevada contestação por parte dos moradores das zonas que recebem mais movimento na noite.
À luz da lei portuguesa, é permitido beber álcool na via pública (a única exceção ocorreu durante o confinamento), podendo ainda transportar-se álcool em quantidade. Aproveitando esta liberdade, o fenómeno do botellón tem-se intensificado nos últimos anos. O termo surge de botella, que significa “garrafa” em espanhol, referindo-se a festas de associação espontânea em que jovens se juntam nas ruas à noite a beber álcool e a ouvir música.
A tendência foi criada em Espanha, nos anos 80, por jovens sem dinheiro para ingressar nas discotecas, tornando as ruas um espaço para a diversão noturna. Chegou a Portugal na última década e, por cá, tem criado mal-estar entre os moradores da Baixa do Porto, descontentes com o ambiente de excessos e de barulho até de madrugada.
Por isso, numa tentativa de travar o fenómeno, controlar a venda de bebidas ao postigo e o ruído noturno, a Câmara Municipal do Porto (CMP) tem vindo, desde 2015, a aplicar regras à movida (ou seja, às atividades ligadas à vida noturna) portuense.
Em resposta às preocupações manifestadas mais recentemente, que se têm vindo a intensificar, o “dossiê” foi reaberto. Neste sentido, o vereador do Turismo e Comércio da CMP, Ricardo Valente, colocou em discussão pública a proposta para reavaliar o Regulamento da Movida. Ao longo dos anos, foram várias as alterações efetuadas – em 2017, por exemplo, a movida teve a sua área aumentada.
Em comunicado ao JPN, a Câmara referiu que o Executivo municipal aprovou, por unanimidade, a abertura do procedimento administrativo de revisão do Regulamento da Movida do Porto, na reunião do dia 7 de março.
No novo documento, estão a ser discutidas novas medidas para travar a venda e o consumo de bebidas na via pública, tendo em conta a mudança de hábitos que decorreu da pandemia. “Temos hoje um conjunto de negócios montados para o consumo ao postigo. É um assunto que nos deve preocupar muito”, alertou o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, em comunicado.
O município recebeu, de 16 de março a 5 de abril, as propostas dos lesados e iniciou uma ronda de contactos com os estabelecimentos, no sentido de os envolver no processo de revisão do regulamento. A Câmara Municipal afirma ter ideias concretas para o processo, no entanto quis ouvir formalmente as entidades interessadas e receber os seus contributos.
Na nota enviada, a Câmara Municipal do Porto reforçou que a competência de proibição do consumo de álcool na via pública pertence ao Governo e não ao Município. “A lei é muito clara nesse aspeto”, alertam. Mesmo assim, Rui Moreira reforça a necessidade da criação de uma lei que atue neste sentido e proíba o consumo de bebidas deste teor fora de estabelecimentos próprios.
O que acham os estabelecimentos de diversão noturna
“Esta é uma situação sem controlo absolutamente nenhum”. Quem o diz é António Fonseca, presidente da Associação de Bares da Zona Histórica do Porto e ex-presidente da União de Freguesias do Centro Histórico do Porto. “A maior parte dos jovens aproveita a dinâmica da noite e vem consumir álcool para as zonas adjacentes aos estabelecimentos de diversão noturna, principalmente para os jardins da Cordoaria”, conta.
António Fonseca considera que a “situação da pandemia” impulsionou o fenómeno do botellón. O presidente da ABZHP mostra preocupação com a ‘adesão’ das camadas mais jovens, sobretudo com os menores de 18 anos. Apesar de o consumo de álcool não ser permitido a esta faixa etária, há jovens que acabam por fazê-lo.
“Muitos dos jovens que estão na rua a beber álcool são menores, esse consumo é proibido, mas não é fiscalizado”, salienta. Enquanto num bar só é permitida a venda de álcool a maiores de 18 anos e, com o fator custo, há um “maior controlo”, nas ruas essas restrições “não existem”.
“A maior parte das pessoas traz as bebidas de casa ou compra em supermercados e estabelecimentos, espaços que nem sequer verificam a idade dos jovens”, assegura António Fonseca.
Miguel Camões, presidente da Associação de Bares e Discotecas da Movida, também refere o problema e demonstra preocupação com este fator. “É preciso controlar o consumo de álcool na via pública. É algo que não nos agrada e que vemos como uma preocupação”, diz.
Segundo António Fonseca, este tipo de consumo também “põe em causa a segurança”, já que as garrafas funcionam como “armas de arremesso que podem provocar danos”. Lembra, ainda, que muitos jovens “terminam a noite nas urgências”, já que o consumo de álcool é “feito de forma descontrolada”.
Os espaços de diversão noturna “não têm culpa” do barulho
As inúmeras queixas por parte dos moradores, descontentes com o barulho ouvido todas as noites à porta de casa, têm tido como principais protagonistas, além dos jovens, os próprios estabelecimentos de diversão noturna, sejam bares ou discotecas.
O Executivo municipal atribui culpa às medidas de dinamização da atividade económica tomadas por estes espaços, principalmente nos anos de pandemia.
António Fonseca, presidente da Associação de Bares da Zona Histórica do Porto, refere que estas queixas “põem em causa” a imagem do setor da animação noturna e “criam mal-estar na vizinhança”, nomeadamente entre moradores e comerciantes, que acreditam que a “culpa” é dos empresários de diversão noturna, “mas não é”, garante.
Afinal, qual é a solução? António Fonseca e Miguel Camões dizem que é necessário aumentar o policiamento nas ruas.
Durante a noite, as ruas do Porto têm pouco policiamento e o consumo de álcool “não está a ser fiscalizado”, diz o responsável pelos bares da Zona Histórica. “Lamentavelmente, as forças policiais não têm sido eficazes no combate a este fenómeno. Esperemos que sejam mais ativas”, insiste.
Miguel Camões conta que tem vindo a “pedir constantemente” à PSP, ao Estado e “alertado” a Câmara para esta necessidade. Além disso, diz que os empresários da Associação de Bares e Discotecas da Movida estão dispostos a fazer um investimento de forma a “promover o policiamento nas ruas da movida”.
“Reforçar o policiamento” e “assegurar o cumprimento das regras” por parte das enchentes de jovens e dos empresários dos espaços de animação noturna parece ser o primeiro passo para contornar o fenómeno do botellón, na opinião dos responsáveis.
Que soluções se propõem?
O presidente da Associação de Bares da Zona Histórica do Porto, que foi contactado pelo município para apresentar as suas propostas, diz que deu o seu contributo como, aliás, o faz “sempre que há discussões para o Regulamento”. Assegura, no entanto, que a solução não é “limitar os horários”.
Para António Fonseca, os estabelecimentos não devem ter horários “reduzidos ou estandardizados” e a solução passa pelo “combate à venda na via pública”. “Quando os estabelecimentos fecham todos à mesma hora, a confusão é muito maior, porque as pessoas saem ao mesmo tempo. Há mais fluxo nas ruas”, explica.
“Por uma questão de ordem pública, é conveniente que a noite vá acabando em vários horários”, completa Miguel Camões. Para o presidente da Associação de Bares e Discotecas da Movida, a discussão de horários “não faz qualquer tipo de sentido”. “Somos completamente a favor dos horários que estão em vigor neste momento e defendemos que a amplitude de horários deve ir até às 6h da manhã, desde que os estabelecimentos cumpram com as regras e condições”, assevera.
António Fonseca considera que os estabelecimentos que não “perturbam” o ambiente, nem contribuem para o “ruído e falta de segurança”, não podem ser penalizados sob pena de “pôr em causa” os investimentos que foram feitos, sobretudo, depois das “dificuldades que passaram no período da pandemia”.
Neste sentido, as propostas dos bares da Zona Histórica passam por apoiar os empresários que não têm “nenhuma responsabilidade” no que concerne ao fenómeno do botellón.
Nestas propostas, António Fonseca defende que “reduzir o horário dos estabelecimentos é matar a dinamização da cidade” e salienta a necessidade de aumentar o policiamento e a fiscalização nas ruas do Porto. “Julgo que a maior parte da disciplina passa pela fiscalização e pelas leis nacionais, não pelas leis locais”, diz.
Ao JPN, Miguel Camões, referiu que a Associação de Bares e Discotecas da Movida não apresentou propostas no sentido de tentar resolver a situação do botellón, que está nas mãos da Câmara, mas que pretende focar-se nos empresários do setor que, neste momento, precisam de um “reforço de tesouraria”.
O Executivo reforça que as soluções a definir depois da recolha de testemunhos que agora terminou não deverão passar por penalizar os estabelecimentos todos por igual, mas sim por uma identificação dos que possam reincidir na quebra destas regras da movida.
Ouvidos os contributos daqueles que se manifestaram, a Câmara Municipal do Porto vai analisar quais as medidas que podem ser aplicadas para minimizar o problema, em conjunto com estabelecimentos e moradores das principais zonas afetadas.
// JPN