A plataforma de financiamento colaborativo já atraiu mais de 130 milhões de euros em investimento. Dos 214 projetos com ativos, a maioria entrou em reestruturação ou é alvo de reclamação de dívidas.
Com sete anos de existência, já deu nome a uma associação de lesados em Espanha. Tem mais projetos falhados do que bem-sucedidos, já foi multada pelo regulador espanhol em mais de 300 mil euros, é alvo de ações judiciais e ameaça levar a tribunal quem atentar contra o seu bom nome.
Mas, segundo o Público, continua a ganhar novos utilizadores e já atraiu mais de 130 milhões de euros de investimento em projetos de financiamento colaborativo.
Chama-se Housers e, em Portugal, vê o número de reclamações a aumentar. A empresa defende-se dizendo que, se há investimentos por reembolsar, são os promotores dos projetos que têm de pagá-los.
A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) rejeita pronunciar-se publicamente sobre casos individuais. E os investidores que perderam capital têm poucas alternativas para além do recurso aos tribunais.
Fundada em 2015, em Espanha, por Álvaro Luna, a Housers é uma plataforma de financiamento colaborativo, focada maioritariamente no sector imobiliário, mas também com projetos noutras áreas, como as artes ou as energias renováveis, que surgiu com o propósito de democratizar o investimento.
Por isso mesmo, os investimentos são abertos a qualquer pessoa e o processo é simplificado ao máximo.
Basta que se registem na plataforma, forneçam uma cópia do documento de identidade e escolham os projetos à procura de financiamento em que pretendem participar.
Quando um projeto – por exemplo, a construção de um edifício – obtiver o financiamento necessário, está pronto para avançar.
A conclusão de cada projeto fica sujeita aos prazos estabelecidos nos contratos de financiamento e, no final desses prazos, cada investidor deverá ser reembolsado. Mas, em vários casos, não é isso que tem acontecido.
Nos anos seguintes à sua fundação, a empresa avançou com a sua expansão, primeiro em Itália e, depois, em Portugal, onde foi lançada em agosto de 2017.
É já no início de 2020, mais de dois anos depois de ter iniciado atividade em Portugal, que a Housers obtém autorização da CMVM para operar no país como plataforma de financiamento participativo, na modalidade crowdfunding.
Por essa altura, a atividade da empresa já levantava dúvidas ao regulador do seu país de origem. Em setembro de 2019, segundo relata a imprensa espanhola, a Comissão Nacional do Mercado de Valores (CNMV, o regulador dos mercados em Espanha) aplicou três multas à Housers, num valor total de 215 mil euros, por infrações que começaram a ser investigadas dois anos antes.
Em causa estiveram a prática de atividades não autorizadas pelo regulador, o “incumprimento grave das obrigações comportamentais” e, ainda, a violação do princípio de neutralidade e de atuação no melhor interesse dos clientes, no que diz respeito à disponibilização de informação sobre rentabilidade, comissões e riscos associados aos investimentos.
Mais tarde, em novembro de 2021, a CNMV volta a sancionar a Housers, desta vez em 130 mil euros, por violar o princípio da neutralidade e as regras para minimizar os conflitos de interesse, ao favorecer projetos de investimento promovidos por entidades com ligações à própria Housers.
Pelo meio, os utilizadores da Housers em Espanha começaram a detetar um cenário recorrente: os atrasos no reembolso dos investimentos realizados através da plataforma.
A situação comum a milhares de investidores acabou por dar origem a uma associação de lesados, a Afetados Housers, criada em junho de 2020.
Nessa altura, segundo afirmou então o seu presidente, a associação contava com 30 mil membros, que tinham a receber, no seu conjunto, cerca de 23 milhões de euros em reembolsos em atraso.
Queixas em Portugal
Não demorou muito até que o mesmo tipo de relato começasse a chegar a Portugal. No Portal da Queixa, são várias as reclamações apresentadas contra a Housers.
As primeiras foram apresentadas no final de 2019, sobretudo a dar conta de bónus prometidos pela empresa a quem recomendasse a plataforma a novos utilizadores, que não chegavam a ser pagos.
As queixas mais recentes já têm outro carácter. São, regra geral, apresentadas por utilizadores que investiram em projetos através da plataforma, não foram reembolsados dentro do prazo previsto e, quando tentaram obter esclarecimentos por parte da Housers, receberam mensagens automáticas sem resposta às dúvidas que colocaram.
É esse o caso de uma utilizadora portuguesa que está há quase dois anos à espera de reaver o montante investido.
Em 2018, investiu dois mil euros no projeto de um promotor que pretendia adquirir uma obra de arte do pintor espanhol Secundino Hernández.
O promotor (não identificado) procurava angariar 145 mil euros para adquirir a obra e, posteriormente, “explorá-la economicamente”, vendendo-a ou alugando-a a clientes corporativos.
Com um prazo de execução de 24 meses, o promotor deveria reembolsar os investidores em abril de 2020, com uma taxa de juro de 11,56% — cerca de 16.700 euros.
Estes eram os dados disponíveis não só no documento de informação sobre o empréstimo participativo, como também na página do projeto que esteve disponível na plataforma da Housers, onde eram destacadas frases como “muitos consideram a arte como um ativo de refúgio que é revalorizado ao longo do tempo“.
Chegou abril de 2020, o reembolso não foi feito. “Desde essa data que contactei várias vezes com a empresa por e-mail e por telefone (atualmente, o número que disponibilizam já nem funciona) e as respostas eram vagas: tinha de esperar, devido à pandemia o mercado de arte estava em baixo e não conseguiram vender a obra”.
“Com o passar do tempo, apenas dizem que não há atualização e que a obra se encontra em procedimento de venda no mercado de arte”, relata a investidora, que prefere manter o anonimato.
“Os e-mails vêm apenas com a assinatura ‘Equipa Housers’, sem qualquer nome associado”, acrescentam.
Em nenhum momento, continua a investidora, lhe foi indicado que poderia haver perda total do capital. No documento com informação sobre o empréstimo, essa possibilidade não é sequer mencionada.
“O investimento era catalogado com um nível de risco baixo. Nunca fui alertada para uma não devolução do capital investido. Obviamente que, como em qualquer investimento, tinha noção de poder correr melhor ou pior, mas nunca uma perda total de capital”, refere.
Na plataforma da Housers, é preciso ler a nota de rodapé para encontrar uma referência a esses riscos.
“Existe risco de perda total ou parcial do capital investido, risco de não obter o rendimento esperado e risco de falta de liquidez para recuperar o investimento. O capital investido não está garantido pelo fundo de garantia de investimentos nem pelo fundo de garantia de depósitos”, lê-se nas duas últimas linhas desta nota, no fundo do site da Housers.
Na página de informação sobre a empresa, escrevem: “Somos especialistas financeiros e trabalhamos para obter o melhor retorno para os seus investimentos”.
Na nota de rodapé, ressalvam: “A Housers não oferece aconselhamento financeiro e nenhuma informação apresentada na plataforma deve ser interpretada como tal”.
Maioria dos projetos falha contratos
Ao Público, uma fonte oficial da Housers justifica que este é “um projeto baseado num empréstimo participativo” e que, nessas condições, “a devolução do dinheiro por parte do promotor está condicionada à venda do ativo, neste caso, o quadro”.
E a venda “é estimada, pois depende do mercado“, acrescenta a mesma fonte. “Não pode ser de outra maneira”.
A empresa detalha, ainda, que o contrato associado a este empréstimo define as medidas a implementar em caso de atrasos no pagamento das prestações, ainda que não esclareça quais são essas medidas.
“Em 2020 e 2021, informou-se os investidores quanto ao estado do projeto, através de documentação apenas acessível pelos investidores, na qual se incluiu um certificado de posse e armazenamento do quadro”, indica.
Como este, vários outros projetos promovidos através da Housers, com os objetivos de financiamento totalmente alcançados, acabaram por ser reestruturados ou seguiram para contencioso.
Quase todos são projetos imobiliários em Espanha, Itália e Portugal que sofreram atrasos na finalização por questões relacionadas com a obtenção de licenças, as obras ou a dificuldade em vender.
É o caso, por exemplo, do projeto Ethic Houses, cujo promotor procurava angariar 1,16 milhões de euros para comprar terrenos e construir quatro moradias independentes, em Loures.
Lançado em 2019 e com um prazo de finalização de 12 meses, o projeto foi “particularmente afetado pela covid e o promotor solicitou uma reestruturação aos investidores”, detalha a Housers.
Mas a reestruturação também não foi cumprida. “O promotor deveria ter saldado a dívida em setembro de 2021 e não o fez”.
Agora, os investidores podem optar entre conceder mais tempo ao promotor para concluir o projeto, ou avançar para recuperação de créditos. Esta não é uma exceção. Na verdade, este exemplo representa a maioria dos casos.
De acordo com as estatísticas disponibilizadas pela própria empresa, a Housers tem hoje 133.040 utilizadores inscritos na sua plataforma, a nível global, que investiram um montante acumulado de 130 milhões de euros.
O rendimento distribuído pelos investidores é, até agora, de 65 milhões de euros, cerca de metade do total investido.
Atualmente, há 214 projetos ativos. Destes, 96 são projetos “sem incidência” (atrasos ou incumprimentos na devolução do capital), 71 são “empréstimos reestruturados” (renegociados entre os promotores e os investidores), 30 já estão em “recuperação” (projetos onde existe reclamação de dívida através de uma empresa especializada em recuperação de créditos) e 17 estão “expirados”.
É nesta última categoria que se encontra, por exemplo, o projeto de Secundino Hernández, ainda que não seja fácil encontrar referências ao mesmo na plataforma da Housers, uma vez que estas foram retiradas.
No quadro de estatísticas apresentado pela plataforma, indica-se que existem 17 projetos expirados, mas quando se entra na página de projetos expirados, contudo, surgem apenas 16.
No início de fevereiro, a página do projeto de Secundino Hernández deixou de estar visível no site da empresa, passando a poder ser acedida apenas através de motores de pesquisa.
De resto, a Housers garante que “os investidores têm informação pontual quando há uma atualização dos projetos através da plataforma” e que os contratos são “claros” e “seguidos escrupulosamente”.
Diz, ainda, que “estes são investimentos com rentabilidades de 8% a 10%”, que, “como todos os investimentos, podem correr mal“.
Seja como for, assegura, “a Housers não recebe o dinheiro dos investidores”. São “os promotores que o recebem”, pelo que, “se alguém tem de reembolsar estes investimentos, são os promotores”.
Acrescentam ainda que se “um projeto se atrase não quer dizer que o dinheiro não vá ser devolvido”, considera. “Doze dos projetos reestruturados já foram encerrados com êxito”, detalha.
“Atravessámos dois anos muito complicados com a covid, que dificultou muito a atividade de promoção imobiliária”, concluem.
Importa lembrar, ainda assim, que vários dos projetos hoje reestruturados ou em recuperação foram lançados em 2018 e tinham um prazo de conclusão anterior a 2020, quando a pandemia eclodiu na Europa.
Housers contra-ataca
Ao longo dos últimos anos, a Housers foi dando resposta às questões levantadas por regulador e investidores e introduziu novas modalidades de contrato que trazem maior proteção aos investidores.
Em julho de 2019, por exemplo, criou os contratos “flex”: em tudo semelhantes aos contratos de empréstimos participativos já disponíveis na plataforma, mas que permitem uma extensão de seis meses no prazo previamente estabelecido.
O objetivo, explica a empresa, é dar “flexibilidade aos projetos“, procurando “evitar o incumprimento dos mesmos por razões alheias ao controlo do promotor”, como atrasos na atribuição de licenças na construção.
A prorrogação de seis meses pode ser ativada de forma unilateral pelo promotor, mas, quando isso é feito, os investidores têm direito a um aumento da taxa de juro anual, num máximo de 1,99 pontos percentuais.
Um ano depois, passaram a lançar projetos com garantias hipotecárias, para proteger os investidores em caso de incumprimento por parte dos promotores.
Uma vez que a legislação que regula o financiamento participativo em Espanha impede as plataformas como a Housers de assumirem garantias em nome dos investidores, a empresa optou por recorrer a agentes de garantia. Em caso de incumprimento dos empréstimos, a decisão de execução cabe aos investidores.
Mais recentemente, e ao ver-se envolvida numa série de processos judiciais, a empresa optou pela litigância.
O confronto com investidores começou em 2020, altura em que um grupo de 46 lesados, todos membros da associação Afetados Housers, avançou para tribunal para recuperar perdas que contabilizavam em 550 mil euros.
Hoje, segundo detalha a Housers, há três processos em Espanha: um onde não chegou a existir abertura de instrução e está encerrado e outros dois que estão agora em fase de instrução.
Sobre esses, a Housers diz apenas que “tratando-se de investimentos que podem correr mal”, não espera que qualquer um destes processos avance.
Já em Portugal, só há registo de um processo interposto contra a Housers, pela mão de uma consultora chamada Conceito, que reclama 7190 euros à plataforma de investimento. É neste contexto que a empresa agora ameaça avançar com as próprias ações legais.
“A Housers, em defesa da sua marca e reputação, deu ordem à sociedade de advogados que a representa para que inicie ações legais contra qualquer pessoa, empresa, associação ou organização que publique acusações contra a empresa, nas quais a acuse de não ter cumprido a legislação em vigor”, pode ler-se num comunicado publicado no blogue da empresa em agosto do ano passado.
Pela mesma altura, segundo noticiou então o jornal El Español, a Housers ameaçou apresentar uma reclamação, junto da autoridade da concorrência espanhola, contra a CNMV, acusando o regulador de tratar a empresa de forma “discriminatória”, em relação aos concorrentes.
Em Portugal, a empresa não tem feito soar os alarmes. Contactada pelo Público, a CMVM diz apenas que “não se pode pronunciar publicamente sobre o concreto teor de reclamações ou de denúncias que sejam apresentadas sobre entidades supervisionadas”.
Lembra ainda que “os investimentos em projetos intermediados por plataformas de crowdfunding estão sujeitos a risco de crédito, o qual é assumido e explícito nas obrigações de divulgação de informação ao mercado a que estas estão sujeitas”.
Já a Housers confirma que não foi alvo de qualquer investigação ou sanção por parte da CMVM.