O fenómeno “runner’s high” pode ter origem numa “versão de canabis” do corpo humano

Muitas pessoas sentem uma redução no stresse, dor e ansiedade, e algumas vezes até euforia, depois de praticarem exercício físico intenso. Mas o que está por trás deste “runner’s high”?

O fenómeno “runner’s high”, foi até agora alvo de inúmeros estudos científicos — alguns dos quais com resultados bastante surpreendentes.

Após uma corrida ou certos tipos de exercício físico, muitas pessoas manifestam uma sensação de leveza, redução no stresse e até na dor, outros sentem relaxamento e euforia. Mas a sensação de felicidade é comum — o chamado “runner´s high”.

Há algum tempo que é conhecido o efeito do exercício na produção de endorfina – a hormona do bem estar que existe naturalmente no corpo humano.

Agora, uma nova pesquisa permitiu descobrir que o exercício aumenta os níveis de endocanabinóides, moléculas que permitem manter o equilíbrio no nosso cérebro e corpo — um processo chamadohomeostase”.

O estudo, realizado por uma equipa liderada pela neurocientista Hilary Marusak, do Departamento de Psiquiatria e Neurociências Comportamentais da Wayne State University School of Medicine, foi publicado no início do mês na revista Cannabis and Cannabinoid Research.

Num artigo publicado no The Conversation, a neurocientista explica que este impulso químico natural pode explicar melhor alguns dos efeitos benéficos da prática de exercícios no cérebro e no corpo.

Décadas de estudos anteriores mostram que a prática de exercício traz benefícios à saúde, risco reduzido de morte prematura e melhorias em dezenas de condições crónicas de saúde, incluindo diabetes, hipertensão, cancro e doenças cardíacas.

Segundo Hilary Marusak, pesquisas mais recentes mostram que o exercício físico é também altamente benéfico para a saúde mental. A prática de exercício regular está associada à redução de sintomas na ansiedade, depressão, doença de Parkinson e outros problemas neurológicos ou mentais mais comuns.

O exercício está também relacionado com um melhor desempenho cognitivo, melhora do humor, menos stresse e maior autoestima.

Ainda não está claro o que está por de trás destas melhorias na saúde mental.

Sabe-se que o exercício tem uma variedade de efeitos no cérebro, incluindo o aumento do metabolismo e do fluxo sanguíneo, promoção da formação de novas células cerebrais – neurogênese – e um aumento da libertação de vários produtos químicos no cérebro.

Os cientistas mostraram também que o exercício aumenta os níveis de endorfinas, um dos opiódes naturais do corpo que atuam no cérebro com uma variedade de efeitos, incluindo a ajuda no alívio da dor — e que está relacionada com a sensação de euforia conhecida como “runner’s high”.

No entanto, os cientistas há muito questionam o papel das endorfinas na sensação de euforia, em parte porque não podem atravessar o cérebro através da barreira hematoencefálica que protege o cérebro de toxinas e patógenos, explica Hilary Marusak.

Segundo a neurocientista, as pesquisas apontam para o papel de versões naturais de canabinóides no nosso corpo, chamadas de endocanabinóides.

Wayne State University

A equipa do THINK Lab da Wayne State University School of Medicine, liderada pela neurocientista Hilary Marusak (ao centro, na linha de cima)

O surpreendente papel dos endocanabinóides

Alguns canabinóides são já bastante conhecidos. É o caso do tetrahidrocanabinol – ou THC, o composto psicoativo da cannabis, e do canabidiol, conhecido como CBD, um estrato de cannabis usado em alguns alimentos, medicamentos, óleos e outros produtos.

Menos conhecido é que o corpo humano também cria as suas próprias versões desses produtos químicos, chamados endocanabinóides  minúsculas moléculas  compostas por lipídios ou gorduras que circulam no cérebro e no corpo.

Os endocanabinóides atuam nos recetores canabinóides em todo o corpo e cérebro. Acusam uma variedade de efeitos, incluindo o alívio da dor, redução da ansiedade e do stresse, melhorando a aprendizagem e a memória. Afetam também a fome, a inflamação e o funcionamento do sistema imunológico.

Os níveis de endocanabinóides podem ser influenciados por alimentos, hora do dia, exercícios, obesidade, lesões, inflamação e stresse.

Segundo Hilary Marusak, estudos feitos em humanos e em animais apontam para os endocanabinóides e não as endorfinas como causa da euforia de quem pratica exercício.

Estes estudos demonstram que quando os recetores opióides são bloqueados, por exemplo usando naltrexona, as pessoas ainda sentem euforia, e uma redução na dor e ansiedade após o exercício. Por outro lado, bloquear os efeitos dos recetores canabinóides reduz os efeitos benéficos do exercício na euforia, dor e ansiedade.

Além disso, não é claro se todos os tipos de exercício, como ciclismo, corrida, resistência ou levantamento de pesos produzem resultados semelhantes.

Para clarificar estas questões, a equipa de Hilary Marusak conduziu uma revisão sistemática e meta-análise de 33 estudos publicados sobre o impacto do exercício nos níveis de endocanabinóides.

A equipa comparou o efeito de uma sessão de exercícios “aguda” – como fazer uma corrida ou um ciclo de 30 minutos – com os efeitos de programas “crónicos”, como um programa de corrida ou levantamento de peso de 10 semanas.

De acordo com a pesquisa, todos os estudos indicam que o exercício intenso aumenta de forma consistente os níveis de endocanabidóides.

Os efeitos foram mais consistentes para um mensageiro químico, conhecido como anandamida, a molécula do “êxtase” — assim designada, em parte, devido aos seus efeitos positivos no humor.

Esse efeito foi observado, realça Marusak, em diferentes tipos de exercício físico, incluindo corrida, natação, levantamento de pesos, e, curiosamente, em indivíduos com e sem problemas de saúde recorrentes.

Estudos que analisaram a intensidade e duração do exercício físico concluíram que os níveis moderados de intensidade do exercício, como andar de bicicleta, são mais eficazes do que exercícios com baixa intensidade, como caminhar, quando se trata de elevar os níveis de endocanabinóides.

Os estudos sugerem também ser importante manter a frequência cardíaca elevada, entre cerca de 70 a 80% da frequência cardíaca máxima ajustada à idade, por pelo menos 30 minutos para conseguir todos os benefícios.

Há ainda muitas dúvidas sobre a ligação entre os endoanabinóides e os efeitos benéficos do exercício, e não está claro qual é a quantidade mínima de exercício que resulta num aumento dos endocanabinóides — nem por quanto tempo estes compostos se mantém elevados após a prática de exercício agudo.

Mas o meta-estudo da equipa de HilaryMarusak permite agora aos investigadores entender melhor que tipos de exercício físico beneficiam mais ou menos o corpo e o cérebro humanos.

E certamente que lhe dão a si também uma motivação extra para arranjar tempo para fazer exercício na correria do dia a dia.

Inês Costa Macedo, ZAP //

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