Depois de 30 minutos de mergulho, numa área de 240 metros quadrados, o biólogo Miguel Correia só encontrou um cavalo-marinho: “hippocampus guttulatus, sexo masculino, jovem adulto”. Há 5 anos, havia dezenas.
A sensação repetiu-se 15 vezes, em todas as zonas de amostragem analisadas para o censo populacional, realizado no primeiro semestre de 2018 por Miguel Correia, investigador do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve.
Em 8 mergulhos não encontrou qualquer exemplar e em mais 4 apenas avistou um ou dois cavalos-marinhos. Nos restantes locais, os números variaram entre os cinco e um máximo de 21. No total, nos 3800 metros quadrados de área protegida só contabilizou 40.
A posterior análise científica da amostra confirmou a certeza que o biólogo já tinha: a maior comunidade do mundo fora devastada, reduzida a um mínimo tão baixo que pode já não assegurar a reposição. Comparando com 2012, a diminuição é de 80%. A estimativa aponta para que não restem mais do que 155 mil cavalos-marinhos na Ria Formosa.
Em seis anos desapareceram quase 600 mil. Mas o cenário é ainda mais devastador quando comparado a 2001, quando a investigadora canadiana Janelle Curtis descobriu que a Ria Formosa era a área mais populada: eram 1,3 milhões de cavalos-marinhos.
Entretanto, a abundância de cavalos-marinhos tinha sofrido uma quebra acentuada pela destruição das pradarias, mas por volta de 2008 começara a reerguer-se. Agora, em 10 dos 15 locais de mergulho registaram-se os piores números de sempre.
No extremo poente da Ria Formosa, localizado perto da Quinta do Lago, passou-se de 22 cavalos-marinhos para 2; nos sete pontos de mergulho ao longo do canal de Faro só foram registados nove; junto à barra da Armona, de 20 resta um; junto ao pontão de Marim, de uma dezena passou-se para nenhum.
“Se os factores de pressão não forem eliminados num curtíssimo espaço de tempo, os cavalos-marinhos poderão correr o risco de não terem o número mínimo que permita a sua recuperação, ficando suscetíveis a uma extinção local”, garante o biólogo, citado pelo Expresso. “E isso pode acontecer dentro de dois, no máximo três anos”, acrescenta.
O censo 2018 foi pedido no início do ano pela Fundação Oceano Azul, do Oceanário de Lisboa, quando aumentaram os indícios de que a população de duas espécies protegidas – H. guttulatus e H. hippocampus – estava a desaparecer.
“Decidimos agir quando percebemos que este capital natural se podia extinguir por haver uma inação do Estado. A modernidade não é só a fibra ótica, é proteger os valores ambientais e salvar uma espécie que podia ser o símbolo da Ria Formosa ou mesmo do Algarve”, critica Tiago Pitta e Cunha, diretor executivo da Fundação.
O relatório final do impacto populacional ficou pronto este mês. No fundo era só o que faltava saber: quão atingida tinha sido a comunidade. “Os rumores de que havia captura ilegal para o mercado asiático de centenas de indivíduos diariamente e de que se vendiam cavalos-marinhos secos a cinco e 10 euros a unidade já eram há muito uma certeza. Mas o pior é que essa prática continua”, relata Miguel Correia.
É feita por arrasto de vara, em que um barco arrasta uma rede fina que apanha tudo por onde passa. Os cavalos-marinhos são sedentários, vivem em áreas de 100 metros quadrados e os arrastos dizimam totalmente os locais. Os que não são apanhados ficam isolados, reduzindo a possibilidade da reposição da população. Além de levar os cavalos-marinhos, a rede destrói as pradarias impossibilitando o regresso da espécie.
Venda de cavalos-marinhos é negócio milionário
As denúncias chegaram ao Serviço de Investigação Criminal da Polícia Marítima. O inquérito foi aberto há poucos meses mas já foi possível identificar um esquema de tráfico em rede, extremamente lucrativo, a operar em Olhão e com ligações ao Oriente e a Espanha. O valor das encomendas subiu nos últimos tempos devido à escassez de cavalos-marinhos, o que pode aliciar ainda mais pescadores para o crime.
O negócio terá começado há cerca de três anos, quando começaram a aparecer na zona compradores orientais de pepinos do mar, um invertebrado da família da estrela-do-mar apanhado aos milhões para satisfazer a procura de chineses e japoneses que lhe atribuem poderes medicinais, como a cura do cancro do cólon, da artrite, da impotência e da fadiga.
Os investigadores acreditam que um crime levou ao outro. Os traficantes perceberam que na Ria Formosa havia cavalos-marinhos, ainda mais rentáveis do que os pepinos. Um quilo – ou seja, 300 indivíduos – pode ser vendido por 1500 euros, sendo que o seu valor multiplica duas vezes e meia quando chega ao mercado asiático.
A nível mundial, todos os anos, mais de 15 a 20 milhões são capturados e transformados em pó para utilização na medicina tradicional oriental, numa versão piscícola de Viagra que se aplica nos genitais masculinos misturado com óleo. Mas não chegam: a procura ronda as 600 toneladas anuais e move cerca de 1600 milhões de euros.
Compradores chineses e intermediários espanhóis frequentam as outras zonas próximas da Ria, onde abordam os pescadores portugueses. Alguns apresentam-lhes listas com as várias espécies proibidas que se dispõem a comprar, cavalos-marinhos incluídos. Os que aceitam trabalhar para as redes juntam-se em grupos, espécie de cooperativas informais em que todos contribuem para completar a encomenda, dividindo depois o lucro.
Fazem a apanha de noite, com vara de arrasto ou por mergulho, neste último caso capturando os cavalos-marinhos à mão, um a um. Junto às capitanias há sempre vigias, que alertam quem está na água quando é detetada a saída de embarcações policiais.
Os primeiros apanhados em flagrante foram detidos em Espanha, há dois anos. Dois pescadores portugueses de Olhão, pai e filho, e a mulher deste, brasileira, encontram-se com dois espanhóis de Cádis na estação de autocarros de Marbella, em Málaga. A família algarvia traz no porta-bagagens três malas cheias de cavalos-marinhos secos, sete quilos, 2133 exemplares que se prepara para vender por dez mil euros.
A viagem foi planeada ao milímetro. Veio outro carro antes, a fazer de batedor, mas não serviu de nada. O Serviço de Proteção da Natureza da Guardia Civil tinha sido informado do negócio, interrompeu a transação e deteve os cinco traficantes por crime contra a flora e a fauna e tráfico ilegal de espécies em risco.
Em Portugal nunca houve detenções, só operações e deteções de redes e armadilhas. A última ocorreu a 23 de setembro.
“Durante uma ação noturna de fiscalização foi identificada uma embarcação a pescar por arrasto de vara. Os dois pescadores fugiram mas deixaram para trás a rede, onde estavam presos cavalos-marinhos, mas também chocos, polvos e peixes pequenos, que foram devolvidos à Ria”, recorda o comandante Cardoso de Morais, capitão do Porto de Olhão.
Todas as 42 espécies de cavalos-marinhos identificadas estão na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais e a sua comercialização é proibida, restando a via ilegal para a transação.