Um só gene pode explicar 30 condições médicas misteriosas

Enquanto investigava uma doença rara do desenvolvimento, uma equipa de cientistas acabou por descobrir um espetro de doenças que estão todas ligadas a um gene.

Um estudo recentemente publicado na revista Genetics in Medicine, sobre uma doença rara num único doente, resolveu mistérios médicos que afetavam pelo menos 30 pessoas.

Estes doentes apresentavam uma grande variedade de sintomas, desde atrasos no desenvolvimento a malformações ósseas e até morte prematura.

No entanto, os autores do estudo verificaram que todos eles sofriam de doenças causadas por uma mutação no mesmo gene, chamado FLVCR1 — que controla o transporte de dois nutrientes essenciais, a colina e a etanolamina, nas células.

Tanto a colina como a etanolamina têm um papel fundamental no metabolismo — as reações químicas que fornecem energia ao corpo, explicou ao Live Science o autor principal do estudo, Daniel Calame, professor de neurologia pediátrica e neurociências do desenvolvimento no Baylor College of Medicine, no Texas.

“Tendo isso em conta e o facto de o FLVCR1 se expressar em todo o corpo, faz sentido que se possa ter um amplo espetro de problemas, dependendo da gravidade do défice no transporte de colina/etanolamina”, afirmou Calame.

O primeiro paciente do estudo foi tratado na clínica de Calame no Texas Children’s Hospital. Apresentava graves atrasos no desenvolvimento neurológico, um historial de convulsões e, surpreendentemente, não tinha capacidade para sentir dor.

Convulsões e atrasos no desenvolvimento neurológico são uma combinação comum de sintomas, mas a falta de sensação de dor da criança era invulgar, explica Calame. O rapaz e os pais já tinham feito testes genéticos, mas ninguém tinha conseguido identificar a causa principal do seu distúrbio.

Assim, Calame e a sua equipa aprofundaram esses dados, estudando toda a constelação de genes no genoma do rapaz que codificam proteínas. Repararam que havia uma mutação muito rara em ambas as cópias do gene FLVCR1.

Este facto chamou a atenção de Calame, porque o gene tinha sido anteriormente associado a doenças muito diferentes que envolviam a coordenação muscular e a degradação da retina, respetivamente.

Estes eram sintomas muito diferentes dos observados no seu doente, reconheceu Calame. Mas havia um ponto em comum: nalguns casos, os doentes com essas outras doenças também apresentavam uma sensibilidade reduzida à dor.

“Havia um pouco de sobreposição”, nota Calame.

O gene FLVCR1 também tinha sido estudado em ratinhos. Quando o gene foi eliminado dos embriões dos roedores, a sua ausência provocou um nado-morto. Os ratos nados-mortos apresentavam malformações ósseas e cerebrais, bem como anemia grave.

Para descobrir o que se passava, Calame e a sua equipa recorreram à sua própria base de dados de ADN de mais de 12.000 indivíduos com doenças genéticas e contactaram outros laboratórios de investigação em todo o mundo com dados semelhantes.

Identificaram 30 doentes de 23 famílias diferentes com mutações FLVCR1. Havia 22 mutações no total, 20 das quais nunca tinham sido registadas antes.

Alguns dos 30 indivíduos nasceram mortos devido a graves problemas de desenvolvimento no útero. Outros sobreviveram mas sofreram atrasos no desenvolvimento, malformações ósseas ou microcefalia, uma condição em que o crânio é mais pequeno do que deveria ser.

Em experiências de laboratório, Long Nam Nguyen, professor associado da Universidade Nacional de Singapura e coautor do estudo,investigou a função do FLVCR1.

Esta investigação revelou o papel do gene na movimentação da colina e da etanolamina nas células, ajudando a explicar como uma única alteração genética pode afetar tantos sistemas do corpo.

Calame e a sua equipa estão agora a recolher amostras de sangue de doentes com mutações no FLVCR1 para ver se conseguem encontrar uma forma de tratar estas doenças raras. Nalguns casos, é possível que a suplementação das células com mais colina e etanolamina possa ajudar, disse Calame.

Em alternativa, os investigadores poderão ter de utilizar outro medicamento para evitar a acumulação de toxinas que pode ocorrer quando os processos celulares fundamentais não funcionam corretamente.

A investigação poderá ter implicações noutras condições que envolvam a colina, um nutriente essencial que as pessoas podem obter a partir de folhas verdes, feijão e muitos produtos animais.

A deficiência de colina tem sido associada a lesões nervosas relacionadas com a idade e a doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer, diz Calame. “Tem muitas implicações para além desta doença muito rara”.

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