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“Violência garante sucesso”. Uber usou ataques a motoristas para ganho próprio e teceu teia de influências políticas

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A empresa encarava os ataques contra os motoristas como uma forma de ganhar apoio nos meios de comunicação e usou-os para tentar pressionar os responsáveis políticos a relaxar as regulações.

A nova investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas veio expor as práticas mais duvidosas da Uber. Mais de 124 mil documentos confidenciais que foram agora publicados revelam como a empresa atropelou várias leis, enganou a polícia, explorou a violência a que os motoristas foram expostos durante os protestos dos taxistas e que até influenciou responsáveis políticos para seu benefício.

Durante a sua explosão nos últimos anos, a Uber chegou mesmo a quebrar leis e regulações para táxis para se conseguir expandir até chegar às principais cidades do mundo. E os executivos da empresa estavam cientes das ilegalidades que estavam a cometer, com mensagens a mostrar que se consideravam “piratas”.

Travis Kalanick, o co-fundador da Uber, é um dos principais intermediários nos emails e mensagens trocadas. Numa conversa, Kalanick desprezou as preocupações de outros executivos relativamente à segurança dos motoristas da empresa devido aos protestos dos taxistas em vários países europeus contra aquilo que diziam ser uma concorrência ilegal e desleal, incluindo em Portugal.

“Temos de usar isto a nosso favor”

França foi talvez o país onde os confrontos se tornaram mais violentos. O The Guardian recorda que em Janeiro de 2016, em Lille, um condutor chegou a levar um soco na cara depois de ter feito um serviço e que houve mais casos semelhantes noutras cidades francesas.

A empresa adoptou várias medidas para proteger os seus trabalhadores, instruindo-os a não utilizar objectos ou roupas que os identificassem em público, a não irem para os escritórios durante os protestos e até com a contratação de equipas de segurança. Mas há um detalhe a ter a conta — a Uber não considera que os motoristas são seus funcionários e não lhes ofereceu o mesmo tipo de protecção.

E Kalanick parecia não se preocupar com isso. Depois de a vice-presidente de comunicação da Uber, Rachel Whetstone, ter alertado para o risco de violência contra os motoristas, Kalanick respondeu que isso seria benéfico para a empresa.

“Se tivermos 50 mil passageiros, eles não vão nem podem fazer nada. Acho que vale a pena. A violência garante o sucesso. Podemos resistir contra estes gajos, certo? Concordo que temos de pensar na altura e locais apropriados”, escreveu Kalanick.

Os condutores foram depois pressionados a escrever cartas endereçadas para o Presidente e primeiro-ministro de França apelando a que salvassem os seus empregos. A Uber também estava por trás de um protesto que supostamente era de uma associação independente de condutores, sendo que apenas algumas centenas dos participantes eram, efectivamente, motoristas.

Com o passar do tempo e a expansão da empresa para novos mercados, houve casos em que os motoristas foram espancados ou até assassinados por taxistas na África do Sul, Colômbia, México e Brasil.

No entanto, os executivos da empresa aproveitaram estes casos para gerarem apoio em torno da regulação dos seus serviços e consideraram-nos vantajosos por mancharem a imagem dos taxistas nos meios de comunicação.

“A violência em França criou um impulso pela regulação“, afirmou um gerente de comunicação na Europa num email. “Um condutor foi falar à imprensa e os taxistas despejaram um saco de farinha por cima dele e dos passageiros. Ele fez queixa e um taxista passou a noite na prisão… Boa história”, comentou o gerente da empresa na Bélgica após um protesto em Bruxelas. “Temos de usar isto a nosso favor”, sugeriu outro responsável.

Já nos Países Baixos, um grupo de homens mascarados, alegadamente taxistas, terão atacado os motoristas e as viaturas com martelos. Em resposta a isto, os executivos trocaram emails onde se mostravam contentes com o impacto mediático dos ataques e falavam sobre a melhor forma de usar a violência para tentarem influenciar o Governo neerlandês.

Quando os jornais começaram a noticiar os casos, o director de políticas públicas da Uber na Europa, Médio Oriente e África, Mark MacGann, deu os parabéns ao resto da equipa: “Que trabalho excelente. Isto era exactamente aquilo de que precisávamos e o timing é perfeito. Passo um na campanha, ponham os media a falar sobre a violência dos taxistas”. Eles vão “publicar isto na primeira página amanhã sem sequer a nossa impressão digital”, escreveu outro gerente.

Em resposta à revelações, MacGann emitiu um comunicado onde diz que “não há desculpa” e que se sente “repugnado e envergonhado” por ter participado na “banalização da violência”. Já Kalanick questionou a autenticidade de alguns dos documentos e o seu porta-voz garante que “nunca sugeriu que a Uber se devesse aproveitar da violência à custa da segurança dos motoristas”.

Estratégia chegou a Portugal

Um dos exemplos apresentados pela investigação citado pelo The Washington Post, ocorreu em Portugal, em 2015, quando taxistas cometeram “actos de violência” contra motoristas da Uber em diversas ocasiões, provocando ferimentos em vários e levando um deles a ser hospitalizado.

A contestação ao serviço Uber em Portugal e à falta de regulação da sua actividade, cresceu de tom ao longo do primeiro semestre de 2015, culminando, no final de Junho, na confirmação de uma providência cautelar, apresentada pela Associação Nacional de Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL), junto do Tribunal Central de Lisboa, para a suspensão da atividade da plataforma tecnológica.

As ações de taxistas portugueses sucederam-se ao longo do segundo trimestre e voltaram a ganhar dimensão em setembro e outubro, com manifestações que chegaram a ser realizadas, em simultâneo, em Lisboa, Porto e Faro.

Na altura, Portugal estava em vésperas de eleições legislativas, que levaram à mudança de Governo. A regulação das plataformas tecnológicas para o transporte de passageiros viria a entrar em vigor em 2018.

De acordo com o The Washington Post, que situa o caso em Julho de 2015, Rui Bento, na altura gestor da Uber em Portugal, aparece num email a dizer que a empresa estava “a ponderar” apresentar a informação dos ataques e dos ferimentos aos meios de comunicação locais, na altura em que a ANTRAL, a maior associação de taxistas em Portugal, procurava contrariar a estratégia de expansão da Uber.

Na versão de Rui Bento, nas mensagens, a ideia por detrás da difusão das informações dos ataques dos taxistas contra motoristas da Uber era “criar uma ligação direta entre as declarações públicas de violência do presidente da ANTRAL (Florêncio Almeida) e estas ações, para degradar a sua imagem pública”.

Em resposta a esta mensagem de Rui Bento, Yuri Fernandez, gestor de comunicação da Uber, propôs que se investigasse o passado de Florêncio Almeida: “Para ver se temos alguma coisa ‘sexy’ para os ‘media’”, de acordo com os documentos citados pela investigação.

Macron ajudou secretamente a Uber

A investigação também deixa Emmanuel Macron em maus lençóis. Os documentos revelam que o enquanto chefiou o Ministério da Economia, entre 2014 e 2016, Macron esteve em contacto permanente com os executivos da Uber e que protegeu a empresa em detrimento dos interesses dos taxistas, tendo até feito um “acordo secreto” com os membros do Governo socialista que discordavam.

O acordo terá obrigado a empresa a deixar cair um dos seus serviços sem licença mais polémicos em troca de regras mais relaxadas noutro, avança o The Guardian. “Obrigado, querido Travis. Vamos continuar em contacto e progredir juntos. Cumprimentos, Emmanuel”, escreveu o então Ministro a Kalanick em 2014.

Quando, em 2015, a polícia francesa tentou banir a operação da Uber na segunda maior cidade do país, Marselha, um dos gerentes da empresa contactou directamente o Ministro da Economia, e Macron respondeu: “Vou tratar disso pessoalmente. Para já, fiquem calmos”.

Macron também sempre se mostrou adepto da empresa e acreditava quea “uberização” da economia tornaria a França a “nação das startups”. MacGann adorou o apoio que a empresa recebeu de Macron. “Que reunião incrível, nunca vi nada como isto. Vamos estar todos a dançar em breve”, prometeu.

Kalanic também fez questão de agradecer directamente a Macron: “Levo muito a sério o seu comentário onde acredita que a Uber vai trazer inovação e emprego para França. Comprometo-me a ver isso e num ritmo rápido, se a estrutura de regulação apropriada possa ser criada para que a Uber seja um sucesso em França“.

Outro nome de peso que sobressai na lista de políticos na esfera de influência é o de, Joe Biden, que na altura era vice de Barack Obama, tendo-se reunido várias  várias vezes com o CEO da Uber e defendido publicamente a empresa por dar aos trabalhadores a “liberdade para trabalharem quantas horas quiserem”.

Já David Plouffe, ex-membro da campanha de Obama que depois foi trabalhar para Uber, aproveitou as suas ligações à Casa Branca para beneficiar a empresa e tornou-se um dos principais rostos do braço político do lobby, avança o The Guardian.

Políticos como o então primeiro-ministro dos Países Baixos, Mark Rute, surgem na investigação como conselheiros da empresa, tendo transmitido a Travis Kalanick, em 2016, a recomendação para a empresa “realçar os pontos positivos”, para “ser melhor vista pela população”, mostrando preocupação com os interesses da Uber.

Matteo Renzi, ex-chefe do Governo italiano, assim como o seu homólogo espanhol, Mariano Rajoy, ou o governante do Dubai, o Sheikh Mohammed bin Rashid al-Maktoum, foram outros dos políticos que a Uber contactou.

Já quem não cedia à pressão era insultado, como foi o caso de Olaf Scholz, o actual chanceler alemão que na altura era autarca de Hamburgo. Os emails revelam que os responsáveis descreveram Scholz como “um mero palhaço” depois de este ter exigido um aumento dos salários para os condutores.

No Reino Unido, Boris Johnson também esteve na mira. Na altura, o primeiro-ministro demissionário era Presidente da Câmara de Londres e a Uber estava preocupada devido à recusa de Johnson em reunir-se com os executivos da empresa, já que este estava do lado dos taxistas.

Boris terá mesmo dito que “seria menos danoso politicamente ser fotografado com o líder do Estado Islâmico do que com Travis Kalanick”. A Uber começou assim uma campanha de lobbying incessante para tentar impedir Johnson de impor regulações mais duras em Londres e tentou também influenciar o então primeiro-ministro, David Cameron, atráves da contratação de Rachel Whetstone, uma amiga sua.

Empresa pode ter obstruído a justiça

Outra das grandes revelações da investigação é referente ao “kill switch” que os executivos exigiram que fossem implementados nos escritórios da Uber, como forma de evitar que a polícia ou os reguladores tivessem acesso a dados sensíveis durante incursões surpresa em pelo menos seis países.

É possível que estas prácticas tenham quebrado a lei e possam ser julgadas por obstrução à justiça em França, nos Países Baixos, na Índia e na Hungria.

Numa resposta à investigação, a Uber admite os “erros”, mas afirma que a sua estratégia mudou em 2017 com a entrada de Dara Khosrowshahi para o cargo de CEO. “Não vamos inventar desculpas pelo comportamento passado que claramente não se alinha com os nossos valores presentes”, afirma a empresa.

Adriana Peixoto, ZAP // Lusa

3 Comments

  1. Em nenhuma parte da noticia existem sequer rumores que a Uber tenha sido responsáveis pelos ataques, apenas que os usaram em seu proveito .. pode ser imoral, mas longe de ser ilegal usar um evento negativo para obter ganhos.
    Fazemos isso a toda a hora, por exemplo as filas no SEF do aeroporto, muitas vezes provocadas por incompetência do MAI, servem ao governo para promover o novo aeroporto.

    A pergunta talvez seja, porque não se cria legislação eficiente para os VTE, porque se quer que eles pagem e sejam como taxis mas depois não tem desconto na compra de viaturas, não possam circular nas vias de BUS ou que sejam tratados como são no aeroporto (que custava dar-lhes um local de drop-off/on)

    Porque se tenta branquear as agressões falando no uso das mesmas em beneficio da UBER?
    Porque se mostra que a UBER sabe das ilegalidades que comete, mas sem frisar que a ANTRAL também está ciente das ilegalidades cometidas na atribuição / venda de licenças de serviço ou nas constantes ilegalidades e esquemas dos taxistas?

    Nenhum deles é santo, mas para os passageiros o que interessa é o efeito final, eu entro num UBER e pago “…menos”, quando entro já o paguei portanto ele pode ir dar a volta a Faro para me levar do Aeroporto de LIS para a Gare do Oriente que ele é paga o combustível, eu ja paguei os 3 Eur da viagem. Alem do mais que não apanho com o desaforo do motorista que está ali à espera duas horas para apanhar um serviço de 5 minutos ou até tentar recusar o serviço (escrevo tentar porque é ilegal recusar o serviço, ele pode tentar á vontade porque simplesmente o ignoro e chamo a autoridade)

    O que interessa ao turista é que chega a LIS, e se encontra num dos poucos, se não o único, aeroporto da Europa que nem indicação tem de onde o UBER pode esperar por ele.
    Damos uma imagem de perfeitos desorganizados quando vejo um turista á procura de onde está o parque 8 (quem no seu prefeito juízo na ANA se lembra que está bem fazer o turista atravessar estradas e rotunda com malas para apanhar um UBER).

    Vivemos num pais de incompetência que em 8 anos foi incapaz de lidar com um problema simples por medo de chatear a ANTRAL.

    Não estou a dizer que os taxis são desnecessários nem que os VTE são fundamentais, mas a opção de escolha é boa.
    Tanto apanho taxistas fantásticos como condutores de VTE que são umas autenticas bestas que nem mereciam ter carta quanto mais conduzir profissionalmente e com atendimento ao publico. (…e vice-versa)
    Mas à uma coisa que adoro nos VTE, posso premiar um serviço fantástico com uma compensação financeira, um serviço normal e bom com atribuição de estrelas que serve para qualificação dos motoristas e um mau serviço sem estrelas e com um comentário a fundamentar que também ele serve para qualificação do motorista.
    Ficarei muito contente quando em Portugal se deixe de comprar a licença de taxi por valores maiores que uma casa e que os motoristas estejam sujeitos não a uma licença familiar mas sim a uma avaliação dos distritos onde fazem serviço … algo transparente

  2. A Uber instalou-se em Portugal usando os políticos corruptos. Os ditos políticos criaram por sua vez uma versão falseada da realidade que conduziu a uma deturpação dos propósitos reais da Uber e a transposição desses interesses para a letra da lei. Tudo isto, teve o suporte da Comunicação Social. Não há nada de inovador neste algoritmo. A entrevista é apenas uma confirmação do que já estava mais do que sabido.

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