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Nazis queimaram o primeiro arquivo LGBTQ. Procura-se agora o rasto do “Einstein do sexo”

Wellcome Images / Wikimedia

Hirschfeld e Li Shiu Tong durante a Quarta Liga Mundial para a Reforma Sexual em 1932.

Nazis queimaram aquele que é considerado o primeiro arquivo LGBTQ. Procura-se agora o rasto de Magnus Hirschfeld, conhecido como “Einstein do sexo”.

Magnus Hirschfeld foi um médico e sexólogo alemão, fundador do Comité Cientifico-Humanitário e do Instituto de Ciências Sexuais. Nascido em 1868 e conhecido como “Einstein do sexo”, o germânico foi considerado um pioneiro na defesa dos direitos dos homossexuais.

Nas palavras do historiador Dustin Goltz, o seu instituto foi o responsável por realizar “a primeira defesa institucional dos direitos dos homossexuais e transexuais”. O avanço científico, propiciado pelo trabalho de Hirschfeld, foi considerado essencial para a humanização dos homossexuais na Europa e para o avanço dos direitos homossexuais em todo o mundo.

Fundou o Comité Cientifico-Humanitário com o intuito de defender os direitos dos homossexuais e revogar o parágrafo 175 da lei alemã, que penalizava as relações homossexuais. Apesar dos seus esforços, nunca conseguiram revogar a lei.

Hirschfeld trabalhou para descriminalizar as relações homessexuais na Alemanha. O médico recolheu mais de 5.000 assinaturas de alemães dispostos a serem identificados publicamente, incluindo figuras como Albert Einstein e Thomas Mann.

A subida ao poder dos nazis em 1933, uma das primeiras ações do governo de Hitler foi destruir o instituto e incendiar a sua biblioteca. Na altura, Hirschfeld estava no estrangeiro e nunca mais regressou à Alemanha, tendo sido privado da sua nacionalidade pelos nazis em 1934.

Nos últimos 40 anos, ativistas procuram os restos da sua lendária coleção, que sobreviveram ao incêndio há quase 90 anos. Acredita-se que tenha sido o primeiro arquivo LGBTQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Queer) de sempre.

A sua biblioteca continha milhares de livros sobre relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, erotismo e género.

A mensagem num fórum online

No início dos anos 90, um jovem canadiano chamado Adam Smith encontrou no sótão do seu apartamento uma pilha de malas de couro velhas. Smith deduziu que pertenciam a um idoso chinês que vivia no seu prédio e que tinha falecido recentemente.

Smith guardou-as e publicou num fórum da internet a seguinte mensagem: “PROCURA-SE: qualquer pessoa familiarizada com o Dr. Magnus Hirschfeld ou Li Shiu Tong”. Uma década mais tarde, Smith descobriu quem eles eram, escreve a National Geographic.

Hirschfeld era muito reservado em relação à sua própria orientação sexual, mas é de conhecimento público que manteve uma relação amorosa com Li Shiu Tong, um discípulo chinês, com o qual esteve junto até ao fim de sua vida. Quando Hirschfeld morreu, em 1935, deixou muitos dos seus pertences para Li Shiu Tong.

Em 2003, o investigador alemão Ralf Dose deparou-se com a mensagem de Adam Smith no fórum e entrou em contacto com o canadiano para reaver as malas com os pertences de Li e Hirschfeld. As malas continham uma máscara funerária de um homem com um bigode grosso, jornais e artigos científicos, e fotografias.

Dose dedicou a sua carreira a procurar aquilo que sobreviveu do arquivo de Hirschfeld. Até ao momento, o germânico encontrou 35 dos 10.000 volumes originais do instituto e outros 25 de outras coleções do sexólogo.

Dose encontrou-se, por exemplo, com a filha já idosa de um médico que trabalhou com Hirschfeld, que lhe deu uma caixa de antigos brinquedos sexuais japoneses. “O meu pai recebeu isto do Magnus Hirschfeld”, disse a mulher. “Gosto muito deles, mas não posso propriamente pô-los em cima do piano”.

“O amor é tão variado quanto as pessoas”

Hirschfeld fundou o Comité Cientifico-Humanitário em 1897, em reação ao julgamento do escritor britânico Oscar Wilde, por 25 acusações de “indecência grosseira” relacionadas com os seus relacionamento homossexuais. Acredita-se que este tenha sido o primeiro grupo de defesa dos direitos LGBTQ, escreve a National Geographic.

De acordo com Hirschfeld, havia 43.046.721 tipos diferentes de sexualidade humana. “O amor é tão variado quanto as pessoas”, disse o médico.

Hirschfeld foi o primeiro médico a investigar e defender abertamente pessoas cujo género não correspondia à sua atribuição de sexo ao nascimento. Todavia, a sua visão ia muito além da homossexualidade. O germânico definiu a sua especialidade como “intermediários sexuais”, que incluíam todos aqueles que não se enquadravam num “tipo ideal” de homens e mulheres heterossexuais e cisgéneros.

“Quando Magnus Hirschfeld teve que deixar a Alemanha, estava convencido de que seriam feitos progressos dentro de alguns anos”, disse Dose. “Ele estava cheio de esperança de que houvesse um movimento internacional para promover a causa das minorias sexuais. E depois tudo parou… Não só aqui [na Alemanha], mas noutros países também”.

A procura pelo rasto do “Einstein do sexo” continua. Dose e companhia sabiam que alguém negociou em nome de Hirschfeld para comprar 20 caixas da sua biblioteca antes de estar ter sido incendiada. A sua ideia era reabrir o instituto em Paris, algo que nunca acabou por acontecer.

A recém-fundada Fundação Alemã de Arte Perdida procura recuperar património cultural da Segunda Guerra Mundial. Os volumes do instituto de Hirschfeld fazem parte dos alvos desta fundação.

O problema é que os bens confiscados pelos nazis foram primeiro distribuídos para outras bibliotecas e depois redistribuídos por forças britânicas e americanas, espalhando os livros pela Europa. Ainda assim, já foram feitos progressos.

Os investigadores já recuperaram “O vestuário feminino e o seu desenvolvimento natural”, de 1904, encontrado em Berlim; uma cópia de 1920 de “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, de Sigmund Freud, encontrada em Praga; e “Vita homossexualis”, um livro de 1902 do ativista August Fleischmann, encontrado numa livraria polaca.

O legado de Hirschfeld é controverso. Apesar de ter sido bastante popular em alguns círculos, há quem alegue que o apoio financeiro por si recebido era oriundo de homossexuais famosos alemães que eram chantageados por Hirschfeld.

Outros criticaram o fundamento médico das suas teorias, baseadas na ideia de que a homossexualidade era hormonal, e que consideram ter aberto as portas à ideia de cura da homossexualidade.

Daniel Costa, ZAP //

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