Desde a sua fundação que a existência da Bélgica tem sido questionada, dadas todas as suas divisões linguísticas, especialmente entre os falantes de holandês e de francês.
Ah, a Bélgica. O país dos chocolates, dos waffles e o seio da União Europeia e da NATO. Mas apesar de ser muitas vezes o palco de importantes decisões políticas internacionais, há ainda muita gente que questiona por que é que a Bélgica existe — incluindo (e principalmente) os próprios belgas.
Ensanduichada entre a França, os Países Baixos e a Alemanha, a Bélgica existe oficialmente como país desde 4 de Outubro de 1830. No entanto, nunca existiu propriamente como nação, havendo uma grande diversidade cultural e linguística practicamente desde a sua fundação e movimentos a favor da unificação com estes três países vizinhos.
Actualmente, o país é até uma federação de três regiões — Flandres, Valónia e Bruxelas-Capital — três comunidades e quatro zonas linguísticas diferentes. Mas se a sua existência esteve (e está) tantas vezes sob ameaça, afinal, por que é que a Bélgica é um país?
Línguas e religiões às avessas
Para entendermos isto, temos de recuar até à altura em quando o território belga actual pertencia maioritariamente ao Império Romano, com algumas partes também de sob o domínio francês. Foi nesta altura que começaram a ser plantadas as primeiras sementes de discórdia, já que para além das barreiras políticas, havia uma barreira entre as línguas de influência românica e as de matriz germânica.
Ao longo da Idade Média, os nobres que controlavam os territórios que compõem a Bélgica nem sequer falavam a mesma língua que os seus súbditos, o que só causou mais confusão e discórdia entre as classes sociais.
Os maiores problemas começaram em meados do século XVI, pela mão de Guilherme I, Príncipe de Orange e considerado o “pai” dos Países Baixos. Na altura, o território pertencia ao Império Espanhol, mas criou-se um clima de tensão quando o Conselho de Regência de Filipe II de Espanha rompeu com os nobres locais, que foram excluídos do governo. A perseguição dos espanhóis aos calvinistas, juntamente com os impostos pesados, também criaram descontentamento.
Guilherme deu assim início à revolta que marcou o princípio da Guerra dos Oitenta Anos, que durou de 1568 até 1648. No início de 1580, foi assinada União de Utrecht, que reforçou a aliança entre as províncias do norte e a maioria das cidades de Brabante e Flandres na resistência contra os espanhóis.
No entanto, as fendas entre o norte e o sul já eram notórias, dado que tinha sido assinada poucos dias antes, ainda em 1579, a União de Atretch (ou União de Arras para os falantes de francês), onde as províncias do sul juravam lealdade a Filipe II.
Esta divisão deveu-se em grande parte a diferenças religosas, com os neerlandeses de influência francesa e geralmente católicos a não se identificarem com o Príncipe de Orange, que era um fervoroso protestante calvinista.
O conflito acabou por chegar ao fim em 1648, com a assinatura dos dois tratados da Paz de Vestfália, mas os rebeldes dos Países Baixos não conseguiram tomar esta parte do sul, que incluia uma maioria de falantes de francês e uma minoria de falantes de holandês que desejavam integrar a nova república independente.
Um “amortecedor”
Para entendermos o resto da história, temos de saltar até 1815, quando Napoleão Bonaparte foi finalmente derrotado em Waterloo, e a Europa ainda estava a lamber as feridas da devastação causada pelas suas guerras.
Este evento teve repercussões históricas muito além da inspiração da famosa canção dos ABBA, já que levou a que a região sul, conhecida como Países Baixos Austríacos, fosse finalmente anexada e integrasse o recém-formado Reino Unido dos Países Baixos, encabeçado pelo rei Guilherme I.
O problema é que, tal como o seu homónio que liderou os rebeldes em 1568, o rei Guilherme I era protestante e parecia pouco interessado em preservar a liberdade religiosa da minoria católica do sul.
O monarca estava determinado a criar um povo unificado, apesar de o norte e o sul terem evoluído de forma distinta tanto a nível cultural como económico. Enquanto que o norte era mais comercial, protestante e só falava holandês, o sul vivia mais da indústria, era católico e estava dividido entre falantes de francês e de holandês.
O rei também deixou claro o seu favorecimento ao norte, canalizando para lá grande parte da riqueza gerada pela indústria do sul. Guilherme também instituiu o holandês como língua oficial na parte francesa da Flandres, o que gerou contestação.
Apesar de oficialmente haver uma separação entre o Estado e a Igreja, as escolas passaram a ser obrigadas a ensinar matérias sobre a Igreja Protestante e a língua holandesa, o que levou muitos habitantes do sul a contestar a independência.
Em 1830, a população falante de francês no sul avançou com motins contra o Governo central e proclamou a independência. Guilherme tentou esmagar a contestação, mas sem o apoio das tropas do sul, não teve sucesso. Foi nesta altura que o monarca decidiu pedir ajuda a outros aliados europeus.
E as potências europeias ajudaram, mas ajudaram o sul. A 4 de Outubro de 1830, foi assim fundada a Bélgica, um estado que os aliados europeus esperavam que funcionasse como um “amortecedor” contra quaisquer novas tensões entre falantes de holandês e de francês.
O reconhecimento da indepedência foi feito sob a condição de que o novo país fosse uma monarquia. E assim, na Conferência de Londres, reuniram-se representantes diplomáticos da Áustria, França, Rússia, Prússia e Reino Unido que oficialmente reconheceram o novo reino da Bélgica.
Pelo meio ainda houve muita cobiça por parte de outros países que queriam dividir o território entre si, mas todas essas intenções foram sempre bloqueadas pelos britânicos, que entendiam que a estabilidade das fronteiras da Bélgica era importante para a manutenção da paz.
Mas uma pessoa que não estava a achar graça nenhuma a tudo isto era Guilherme I, que invadiu a Bélgica em 1831 e tentou reanexar a região aos Países Baixos. No entanto, as tropas holandesas foram rapidamente derrotadas pelos franceses, que vieram acudir os vizinhos do norte. Em 1839, o rei aceitou a derrota e reconheceu a independência dos belgas. E viveram todos felizes para sempre, certo? Certo?
Os mesmos problemas de sempre
Errado. A recém-fundada Bélgica cometeu o mesmo erro que os Países Baixos, já que as suas fronteiras não se limitavam apenas às regiões católicas e falantes de francês e incluíam ainda algumas partes mais do norte onde se falava holandês e que não queriam necessariamente integrar o novo país.
Rapidamente surgiram tensões entre os flamengos do norte e os valões do sul, com os nortenhos a contestar o facto de o francês ser a língua oficial do estado — soa a dejá vu? — mas as ameaças de conflito armado acabaram por nunca se concretizar.
Dada a sua localização geográfica, a Bélgica foi também carne para canhão durante as duas Guerras Mundiais, com planos de anexação alemães e holandeses e até tentativas belgas de anexar partes dos Países Baixos e do Luxemburgo. No entanto, o fim das guerras acabou por travar todos estes planos.
Até aos dias de hoje, ainda falta um sentido de união nacional na Bélgica. O parlamento, o Tribunal Constitucional e o Governo geralmente têm uma proporção de membros falantes de cada língua representantiva da população, por exemplo. Os partidos nacionais também são raros, e na maioria das vezes, a língua é um factor mais determinante para os eleitores do que a própria ideologia política.
Mas quase 200 anos depois, os belgas lá se vão entendendo e contrariando as previsões do diplomata francês Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, que em 1832 antecipou um rápido colapso do novo país: “Os belgas? Eles não vão aguentar. Aquilo não é uma nação, 200 protocolos não formam uma nação. Esta Bélgica nunca será um país, isto nunca vai durar”.