A nossa Galáxia colidiu com muitas outras desde o seu nascimento. O telescópio espacial Gaia da ESA revela agora que a mais recente destas colisões ocorreu milhares de milhões de anos mais tarde do que pensávamos.
A Via Láctea cresceu com o passar do tempo, à medida que outras galáxias se aproximaram, colidiram e foram despedaçadas e consumidas pela nossa Galáxia.
Cada colisão provocou “rugas” que ainda hoje se propagam por diferentes famílias de estrelas, afetando a maneira como se movem e se comportam no espaço.
Um dos objetivos da missão Gaia é desvendar a história da nossa Galáxia através do estudo destas “rugas” – algo que está a fazer ao identificar as posições e movimentos de mais de 100.000 estrelas próximas, uma pequena fração dos cerca de dois mil milhões de fontes que observa.
“Nós ficamos com mais rugas à medida que envelhecemos, mas o nosso trabalho revela que o oposto é verdadeiro para a Via Láctea. A nossa galáxia é uma espécie de Benjamin Button cósmico, que fica com menos rugas com o tempo”, diz Thomas Donlon, investigador da Universidade do Alabama, no EUA, e principal autor do novo estudo do Gaia.
“Observando a forma como estas ‘rugas’ se dissipam ao longo do tempo, podemos saber quando é que a Via Láctea sofreu a sua última grande colisão – e ao que parece isso teve lugar milhares de milhões de anos mais tarde do que pensávamos.”
Estas “rugas” galácticas só foram descobertas pelo Gaia em 2018. Este estudo é o primeiro a determinar com exatidão o momento da colisão que originou as “rugas”, comparando observações com simulações cosmológicas.
Movimentos estranhos
O halo da Via Láctea contém um grande grupo de estrelas com órbitas invulgares, muitas das quais se pensa terem sido adotadas pela nossa Galáxia durante um acontecimento a que os astrónomos chamam a “última grande fusão“.
Tal como o nome sugere, esta foi a última vez que a nossa Galáxia sofreu uma colisão significativa com outra galáxia – que se propõe ser uma galáxia anã massiva que inundou a Via Láctea com estrelas que passam muito perto do Centro Galáctico.
Os cientistas tinham datado esta fusão há 8-11 mil milhões de anos atrás, quando a Via Láctea estava na sua infância, e é conhecida como Gaia-Salsicha-Encélado (ou GSE).
Mas os dados do Gaia – parte da terceira divulgação de dados do telescópio em 2022 – sugerem agora que outra fusão pode ter originado as estrelas com um movimento invulgar.
“Para que as ‘rugas’ das estrelas sejam tão claras como aparecem nos dados do Gaia, devem ter-se juntado a nós há menos de três mil milhões de anos – pelo menos cinco mil milhões de anos mais tarde do que se pensava anteriormente”, acrescenta a coautora Heidi Jo Newberg, também do Instituto Politécnico Rensselaer.
“Novas ‘rugas’ de estrelas formam-se sempre que as estrelas oscilam para trás e para a frente no centro da Via Láctea. Se elas se tivessem juntado a nós há oito mil milhões de anos, haveria tantas rugas mesmo ao lado umas das outras que já não as veríamos como características separadas”.
A descoberta sugere que, em vez de estas estrelas terem tido origem na antiga fusão GSE, devem ter vindo de um acontecimento mais recente, designado por Fusão Radial de Virgem, que teve lugar há menos de três mil milhões de anos.
Reescrevendo a história
Há evidências de que a fusão GSE teve lugar num passado longínquo da história da Via Láctea.
No entanto, trabalhos recentes têm questionado se uma fusão massiva antiga é de facto necessária para explicar as propriedades da Via Láctea tal como a vemos hoje, e se todas as estrelas originalmente associadas à GSE são provenientes do mesmo evento de fusão.
Em 2020, Thomas liderou o estudo que identificou “rugas” de estrelas na Via Láctea e comparou-as com simulações de diferentes fusões possíveis.
“Podemos ver como as formas e o número de ‘rugas’ mudam ao longo do tempo utilizando estas fusões simuladas. Isto permite-nos identificar o momento exato em que a simulação corresponde melhor ao que vemos nos dados reais do Gaia sobre a Via Láctea atual – um método que também utilizámos neste novo estudo”, diz Thomas.
“Ao fazer isto, descobrimos que as ‘rugas’ foram provavelmente causadas pela colisão de uma galáxia anã com a Via Láctea há cerca de 2,7 mil milhões de anos. Chamámos a este evento a Fusão Radial de Virgem”.
Desde então, Thomas e os seus colegas continuaram a explorar esta fusão, refinando lentamente a ideia de que muitas das estrelas e detritos estranhos que se movem no halo interior da Via Láctea foram entregues à nossa Galáxia por uma colisão galáctica muito mais recente do que a GSE.
Esclareceram também que as estrelas originalmente associadas à GSE podem ter tido origem em múltiplas fusões, algumas antigas.
“A história da Via Láctea está, de momento, a ser constantemente reescrita, em grande parte graças aos novos dados do Gaia”, acrescenta Thomas. “A nossa imagem do passado da Via Láctea mudou radicalmente desde há uma década e penso que a nossa compreensão destas fusões continuará a mudar rapidamente.
“Este resultado – que uma grande parte da Via Láctea só se juntou a nós nos últimos milhares de milhões de anos – é uma grande mudança em relação ao que os astrónomos pensavam até agora. Muitos modelos e ideias populares sobre a forma como a Via Láctea cresce esperariam que uma recente colisão frontal com uma galáxia anã desta massa fosse muito rara.”
É provável que a Fusão Radial de Virgem tenha trazido consigo uma família de outras pequenas galáxias anãs e enxames estelares, que se terão juntado à Via Láctea mais ou menos à mesma altura.
Explorações futuras revelarão quais destes pequenos objetos, que se pensava estarem relacionados com uma antiga GSE, estão na realidade relacionados com a mais recente Fusão Radial de Virgem.
Uma colaboração incrível
Esta descoberta junta-se a uma série de resultados do Gaia que estão a reescrever a história do nosso lar cósmico.
O telescópio espacial está numa posição única para explorar a miríade de estrelas nos nossos céus e, até à data, compilou um conjunto de dados inigualável sobre as posições, distâncias e movimentos de cerca de 1,5 mil milhões de estrelas.
“Gaia é uma missão extremamente produtiva que está a transformar a nossa visão do cosmos”, diz Timo Prusti, cientista do projeto Gaia da ESA. “Resultados como este são possíveis graças ao incrível trabalho de equipa e à colaboração entre um grande número de cientistas e engenheiros de toda a Europa e não só.”
“Esta descoberta melhora o que sabemos sobre os muitos acontecimentos complicados que moldaram a Via Láctea, ajudando-nos a compreender melhor como as galáxias se formam e são moldadas – a nossa Galáxia natal em particular.”
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