Foi Pilatos que mandou crucificar Jesus — sabemo-lo agora. Mas nem sempre foi esta a crença popular, e a culpabilização dos judeus pode ter ajudado a disseminar o antissemitismo.
É uma parte simples da história da Páscoa: O governador romano Pôncio Pilatos mandou matar Jesus de Nazaré pelos seus soldados. Impôs-lhe uma sentença que os juízes romanos infligiam frequentemente aos subversivos sociais – a crucificação.
É o que dizem os Evangelhos do Novo Testamento. O Credo Niceno, uma das principais declarações de fé do cristianismo, diz que Jesus “foi crucificado por Pôncio Pilatos”. O testemunho de Paulo, a primeira pessoa cuja pregação em nome de Jesus Cristo é preservada no Novo Testamento, refere-se à crucificação.
Mas, ao longo dos últimos 2.000 anos, era comum alguns cristãos considerarem Pilatos quase inocente da morte de Jesus e tratarem os judeus como responsáveis – uma crença que moldou a história global do antissemitismo.
Durante a época medieval, a Páscoa foi muitas vezes uma altura perigosa para as comunidades judaicas, que os cristãos consideravam “assassinos de Cristo“. Esta perceção foi parte integrante do ódio que motivou a violência em massa na Europa até aos séculos XIX e XX, incluindo os pogroms na Rússia e mesmo o genocídio nazi.
Por que é que os ensinamentos cristãos praticamente ilibaram Pilatos? Porque é que muitos cristãos alegaram que a culpa era dos judeus?
A história dos Evangelhos
Nos Evangelhos, os primeiros quatro livros do Novo Testamento, Pilatos considera Jesus inocente de qualquer crime. Em alguns deles, chega mesmo a proclamá-lo em público.
Mas os chefes dos sacerdotes do antigo templo judeu de Jerusalém veem Jesus como um pregador judeu carismático e popular que desafia a sua autoridade. Mandam prender Jesus e julgá-lo perante Pilatos durante a semana da Páscoa.
Pilatos planeia a libertação de Jesus, mas uma multidão revoltada clama pela sua morte. Pilatos cede e decide crucificar Jesus, que os cristãos acreditam ter ressuscitado três dias depois.
Um relato, escrito em meados do século II ou mais tarde, e não incluído no Novo Testamento, afirmava mesmo que a crucificação de Jesus não tinha sido ordenada por Pilatos. Em vez disso, culpava Herodes Antipas, o governante judeu da Galileia — a região onde Jesus cresceu. Outros textos posteriores aos primeiros séculos d.C. afirmam que Pilatos se tornou cristão.
História romana
Há muito que os estudiosos debatem os factos históricos do julgamento de Jesus. No seu livro de 2025, “Killing the Messiah”, também Nathanael Andrade, que escreve sobre o tema no The Conversation, o faz.
Os testemunhos dos Evangelhos captam o essencial dos julgamentos criminais perante os juízes romanos, que se realizavam em público. Os juízes faziam perguntas aos acusadores e aos arguidos e tinham amplos poderes para decidir se uma pessoa era inocente ou culpada e para impor um castigo.
Os escritores que viveram no Império Romano retratavam os juízes como caprichosos, irresponsáveis ou influenciados por multidões ameaçadoras. Os Evangelhos reflectem esta atitude, fazendo com que Pilatos pareça intimidado a condenar um homem inocente.
Mas, do ponto de vista de um historiador, há um problema crucial com a descrição dos Evangelhos. Os juízes romanos podiam e, por vezes, enfrentavam a destituição do cargo, o confisco de propriedades, o exílio ou mesmo a morte por executarem pessoas claramente inocentes. Por outras palavras, parece improvável que Pilatos tivesse proclamado Jesus inocente, mas depois cedesse à pressão e o condenasse na mesma.
Pilatos não cedeu indiscriminadamente a multidões hostis, nem fez tudo o que os chefes dos sacerdotes queriam. Uma vez que os prefeitos romanos, como ele, tinham de se coordenar com os sacerdotes judeus para governar Jerusalém, provavelmente considerava subversivas as pessoas que incitavam à perturbação social contra eles. Jesus ter-se-ia enquadrado nessa categoria, mas nem Filo nem Josefo dão exemplos de Pilatos a matar pessoas depois de as ter absolvido.
Uma divisão crescente
Por que razão, então, Pilatos mandou crucificar Jesus? Como muitos estudiosos têm argumentado, a resposta simples seria que ele acreditava que Jesus tinha cometido algum tipo de sedição — e não que a multidão tivesse simplesmente pressionado Pilatos a fazê-lo.
No entanto, quando os Evangelhos foram compostos, uma geração depois da crucificação, retratavam Pilatos como convencidos da inocência de Jesus. Com o passar do tempo, outras obras da antiga literatura cristã transferiram a responsabilidade de Pilatos para os judeus.
As experiências dos primeiros seguidores de Jesus ajudam a explicar esta mudança. Eles, tal como o próprio Jesus, eram judeus e consideravam-no um Messias enviado pelo Céu. Mas, ao longo dos séculos I e II, foram-se separando cada vez mais dos outros judeus, até começarem a ver-se como membros de um movimento não judeu: o cristianismo.
Aos olhos das autoridades romanas, os cristãos eram incómodos e, por vezes, enfrentavam processos judiciais e a pena capital. Além disso, Roma tinha infligido atrocidades e medidas punitivas aos judeus após insurreições.
Os historiadores e os estudiosos da Bíblia continuam a debater a razão pela qual Pilatos condenou Jesus. Terá sido por ter sugerido que ele era o Messias, ou, nas palavras de Pilatos, o “Rei dos Judeus”? Terá Jesus incitado uma multidão a perturbar o Templo durante a Páscoa – ou será que os funcionários estavam preocupados com o facto de ele poder, mesmo que inadvertidamente, ter provocado tal perturbação? Estariam Jesus e os seus seguidores envolvidos numa insurreição armada?
Mas, independentemente da resposta, como defende Nathanael Andrade, a responsabilidade pela crucificação cabe a Pilatos — não aos chefes dos sacerdotes e à multidão judaica em Jerusalém.
ZAP // The Conversation
«Apareceu na Galileia um jovem que pregava, com humilde unção, uma nova lei em nome do Deus que o tinha enviado. A princípio, fiquei apreensivo com o facto do Seu desígnio ser incitar o Povo contra os Romanos, mas os meus receios foram logo dissipados. Jesus de Nazaré falava mais como amigo dos Romanos do que dos Judeus. Um dia, observei no meio de um grupo de pessoas um jovem que estava encostado a uma árvore, dirigindo-se calmamente à multidão.
Disseram-me que o seu nome era Jesus. Podia facilmente ter suspeitado disso, tão grande era a diferença entre Ele e os que O ouviam. Os seus cabelos dourados e a sua barba davam-lhe um aspecto celestial. Parecia ter cerca de trinta anos de idade. Nunca vi um semblante mais doce e sereno. Que contraste entre Ele e os Seus ouvintes, com as suas barbas negras e tez morena. Não querendo interrompê-lo com a minha presença, continuei a minha caminhada, mas fiz sinal ao meu secretário para se juntar ao grupo e ouvir.
Mais tarde, o meu secretário contou-me que nunca tinha lido, nas palavras de todos os filósofos, nada que se comparasse aos ensinamentos de Jesus. Disse-me que Jesus não era sedicioso nem rebelde e que, por isso, lhe dávamos a nossa protecção. Ele tinha liberdade para agir, falar, reunir-se e dirigir-se ao Povo. Esta liberdade ilimitada provocou os Judeus – não os pobres, mas os ricos e poderosos.» – Carta de Pôncio Pilatos ao Imperador Tibério César