Afinal, não somos (só) o que comemos. O que as faces dizem dos nossos antepassados

Cabeça de esqueleto de humano em fundo azulado esverdeado.

Engin Akyurt / Pexels

É habitual dizer-se que “somos aquilo que comemos”, mas, afinal, não é tanto assim. Um investigador português descobriu que a forma das faces dos antepassados dos portugueses na pré-história, evoluiu também devido às alterações na história populacional.

Os investigadores que estudam o aparecimento e a difusão da agricultura na história da humanidade têm analisado a influência que o consumo de cereais e de alimentos mais processados teve na forma das nossas faces. Foi assim que se concluiu que o consumo de comidas mais moles e com muitos hidratos de carbono pode influenciar o aparecimento de dentes apinhados e a formação de cáries.

Mas um estudo agora publicado na Nature Scientific Reports sugere que a alimentação das pessoas “é menos importante para a forma das suas faces do que a sua ancestralidade”, conforme se nota no comunicado sobre a pesquisa que analisou as mudanças as mandíbulas de populações da pré-história recente da Península Ibérica.

O ZAP falou com o autor principal do estudo, Ricardo Miguel Godinho que é co-coordenador do laboratório de Osteoarqueologia do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve, e que destaca que “a forma dos nossos ossos é influenciada por muitos factores”, incluindo “aquilo que comemos”.

Godinho liderou uma equipa internacional de investigadores de Portugal e Israel que apurou que a “história populacional/ancestralidade tem muito mais influência” na forma das mandíbulas “do que as alterações de dieta que ocorreram” no período analisado.

“Mandíbulas tornaram-se mais pequenas e gráceis”

O estudo focou-se nos efeitos da introdução da agricultura na Península Ibérica através da análise das mandíbulas das pessoas que viveram entre o período Mesolítico (entre 10 mil a 8 mil antes de Cristo) e o Calcolítico, ou Idade do Cobre (entre 3.300 a 1.200 antes de Cristo), nos actuais territórios de Portugal e de Israel.

“Durante grande parte da nossa história evolutiva fomos caçadores e recolectores“, mas “a invenção da agricultura e pastorícia no Próximo-Oriente há aproximadamente 10.000 anos antes da nossa era” proporcionou o acesso a novos alimentos, sublinham os autores do estudo.

Essas mudanças na dieta podem ser estudadas, por exemplo, no “desgaste dentário” e na “forma dos ossos do nosso aparelho mastigatório”, ou seja, das mandíbulas, explicam ainda.

“O osso é um tecido dinâmico e plástico que se adapta às cargas mecânicas, e com a introdução de alimentos mais processados, as mandíbulas tornaram-se mais pequenas e gráceis”, salientam.

Ricardo Miguel Godinho

Imagem digital que compara as mandíbulas dos povos da Península Ibérica no Mesolítico e do Sul do Levante.

Comparação entre mandíbulas dos povos da Península Ibérica no Mesolítico e do Sul do Levante, região que engloba os actuais territórios da Síria, Jordânia, Israel, Palestina, Líbano e Chipre.

Migrações mudaram faces dos nossos antepassados

O Mesolítico marca a transição entre os períodos Paleolítico e Neolítico e foi uma época de grandes transformações humanas, com a domesticação dos animais e o início do processo de sedentarização, e com a descoberta e o controlo do fogo.

Mas houve também grandes alterações climáticas que levaram ao fim das glaciações que congelaram grande parte da Terra.

Nesta fase entre entre o Mesolítico e o Calcolítico, “houve migrações de populações originárias do Próximo-Oriente [a região da Ásia que fica próxima ao Mediterrâneo, incluindo países como Iraque, Israel e Síria] que introduziram a agricultura e a pastorícia na Península Ibérica”, explica Godinho ao ZAP.

Essas populações migratórias que difundiram a agricultura pela Europa “substituíram, e também se misturaram, com as populações locais caçadoras-recolectoras pré-existentes, tendo tido descendência em comum“, segundo revelam estudos genéticos, aponta o investigador da Universidade do Algarve.

Esta “grande transição populacional e no estilo de vida” motivou alterações genéticas devido às misturas entre povos distintos e teve um impacto na aparência das faces das pessoas da época, designadamente “na forma dos crânios e mandíbulas”, destaca Godinho.

“Os estudos de ADN antigo também mostram que houve um determinado grau de cruzamento entre as populações mesolíticas ibéricas e as populações migratórias que introduziram o novo modo de subsistência neolítico na Península Ibérica”, acrescenta o investigador.

Mas em “muitos outros momentos da nossa pré-história e história”, “houve migrações populacionais que têm impacto na nossa história populacional e, provavelmente, na nossa aparência também”, acrescenta.

A equipa de investigadores liderada por Ricardo Miguel Godinho recorreu a técnicas digitais para estudar a morfologia das mandíbulas. Deste modo, conseguiu reconstruir “espécimes arqueológicos” para fazer “uma análise muito mais detalhada das diferenças de forma”, como se explica no comunicado sobre o estudo.

Entre as técnicas utilizadas estão a “digitalização dos espécimes através de TAC e digitalização de superfície” e ainda “programas de computador para visualização 3D e recolha e análise de dados”, como explicam os autores da pesquisa.

Susana Valente, ZAP //

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