Críticas duras de Guterres: “O mundo mudou. As nossas instituições não”

Justin Lane / EPA

António Guterres

A governação global está “presa no tempo”. O próprio Conselho de Segurança da ONU apareceu na lista de críticas do secretário-geral.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, teceu hoje duras críticas à governação global “presa no tempo”, dando como exemplo o próprio Conselho de Segurança das Nações Unidas e as instituições financeiras de Bretton Woods.

No seu discurso de abertura do Debate da 78.ª sessão da Assembleia Geral da ONU (UNGA 78, na sigla em inglês), Guterres sublinhou que esses dois sistemas refletem as realidades políticas e económicas de 1945, quando muitos países agora representados no plenário da ONU ainda estavam sob domínio colonial.

O mundo mudou. As nossas instituições não. Não podemos resolver eficazmente os problemas tais como eles são se as instituições não refletirem o mundo tal como ele é. Em vez de resolverem problemas, correm o risco de se tornarem parte do problema”, disse Guterres, que se tem posicionado como um forte defensor de reformas das instituições financeiras internacionais e do Conselho de Segurança da ONU, apelando hoje ao seu alargamento à União Africana.

De acordo com o ex-primeiro-ministro português, um mundo multipolar necessita de instituições multilaterais fortes e eficazes, e não de uma governação presa no tempo.

“Estamos cada vez mais perto de uma Grande Fratura nos sistemas económicos e financeiros e nas relações comerciais; que ameaça uma Internet única e aberta; com estratégias divergentes em tecnologia e inteligência artificial; e estruturas de segurança potencialmente conflitantes”, disse.

Chegou a hora, afirmou Guterres, de se renovar as instituições multilaterais com base nas realidades económicas e políticas do século XXI – enraizadas na equidade, na solidariedade e na universalidade e ancoradas nos princípios da Carta das Nações Unidas e no direito internacional.

“Isso significa reformar o Conselho de Segurança de acordo com o mundo de hoje. Significa redesenhar a arquitetura financeira internacional para que se torne verdadeiramente universal e sirva como uma rede de segurança global para os países em desenvolvimento em dificuldades”, defendeu.

O chefe das Nações Unidas disse não ter “ilusões” de que as “reformas são uma questão de poder”, existindo “muitos interesses conflitantes e agendas” que esbarram com a necessidade de mudança.

Mas a alternativa à reforma não é o ‘status quo’, argumentou.

“A alternativa à reforma é uma maior fragmentação. É reforma ou rutura”, pontuou António Guterres, acrescentando que a Democracia está sob ameaça e que o autoritarismo está em marcha.

“Tal como disse ao G20, é tempo de um compromisso global. (…) Os líderes têm uma responsabilidade especial de alcançar compromissos na construção de um futuro comum de paz e prosperidade para o nosso bem comum”, disse ainda.

No arranque da UNGA deste ano, Guterres aproveitou para apontar diretamente para Derna, na Líbia, como exemplo do “retrato triste” de um mundo de desigualdades e injustiças, onde milhares de pessoas foram “vítimas de líderes – próximos e distantes”.

“Há apenas nove dias, muitos dos desafios do mundo fundiram-se numa terrível paisagem infernal. Milhares de pessoas em Derna perderam a vida em inundações épicas e sem precedentes. Elas foram vítimas muitas vezes: vítimas de anos de conflito, do caos climático, vítimas de líderes – próximos e distantes – que não conseguiram encontrar um caminho para a paz”, afirmou.

“O povo de Derna viveu e morreu no epicentro dessa indiferença – enquanto os céus libertavam 100 vezes a precipitação mensal em 24 horas, enquanto as barragens se rompiam após anos de guerra e negligência, enquanto tudo o que conheciam era varrido do mapa. Mesmo agora, enquanto falamos, corpos chegam à costa do mesmo mar Mediterrâneo onde bilionários tomam banhos de sol nos seus super iates”, criticou.

Segundo as autoridades líbias, terão morrido 11.300 pessoas e outras 10.000 estão desaparecidas, havendo ainda estimativas de que o número de mortos possa chegar aos 20.000.

Derna, lamentou Guterres, é um “retrato triste do estado do nosso mundo”, onde inundam “desigualdades, injustiças, e incapacidade de enfrentar os desafios que se colocam no nosso meio”.

“Excelências, o nosso mundo está a ficar desequilibrado“, sublinhou.

O debate de alto nível da 78.ª sessão da Assembleia Geral da ONU arrancou hoje, em Nova Iorque, com a presença de dezenas de chefes de Estado e de Governo de todo o mundo, e irá prolongar-se até ao próximo dia 26.

// Lusa

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