Até meados dos anos 1990, o fungo Sporothrix brasiliensis era um ilustre desconhecido. De uma hora para outra, porém, ele tornou-se um problema de saúde pública.
Os primeiros casos de infeção por esse patógeno começaram a chamar à atenção no Rio de Janeiro, onde os investigadores observaram que a transmissão acontecia principalmente a partir de gatos de rua.
Logo, as infeções se espalharam para outros Estados brasileiros.
Alguns anos depois, a circulação do micro-organismo foi detetada na Argentina, Paraguai, Bolívia, Colômbia e Panamá, com casos pontuais registados também em Inglaterra e nos Estados Unidos.
Mas o que explica este alastramento? Por trás desta epidemia pouco conhecida, há um exemplo de como o desequilíbrio no meio ambiente pode levar a consequências surpreendentes e inesperadas.
De inofensivo a ameaça
Os fungos do género Sporothrix são conhecidos desde 1898. Eles aparecem principalmente no solo e em algumas plantas.
Assim como os seus primos-irmãos que pertencem ao mesmo reino, estas espécies são fundamentais para decompor a matéria orgânica na natureza.
Em alguns casos raros, porém, esses micro-organismos podem causar doenças em seres humanos, conhecidas genericamente como esporotricose.
O Sporothrix brasiliensis, por exemplo, consegue infiltrar-se nas camadas superficiais da pele. O patógeno coloniza este tecido subcutâneo e provoca feridas. O fungo também pode invadir o sistema linfático e afetar os olhos, o nariz e até os pulmões.
Como mencionado anteriormente, estes casos eram raros. Mas a sua frequência passou a chamar à atenção no final dos anos 1990 em algumas localidades do Rio de Janeiro. Entre 1998 e 2001, investigadores da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) diagnosticaram 178 casos de esporotricose.
“Dos 178 pacientes, 156 tinham algum contacto em casa ou no trabalho com gatos que também estavam infetados, e 97 levaram alguma mordida ou arranhão desses animais”, descreve o estudo.
Esta foi uma das primeiras pistas que indica que os números estão a crescer aos poucos. “Segundo as últimas estatísticas, já são mais de 12 mil casos em seres humanos desde então”, atualiza o médico Flavio Telles, da Sociedade Brasileira de Infectologia. “E isso é sem contar os incontáveis registos em gatos e cães”, acrescenta.
Com o passar do tempo, os investigadores puderam entender melhor o ciclo da infeção não apenas entre as pessoas, mas também em animais que vivem próximos de nossas casas.
Desequilíbrios ambientais
A ascensão do Sporothrix brasiliensis ainda é objeto de estudos e especulações. Assim que o fungo chegou nos gatos silvestres e de rua, o “saltou” para os seres humanos foi relativamente fácil. Afinal, estes felinos são extremamente comuns em muitos bairros brasileiros.
Não raramente, as crianças brincam com eles e os adultos veem com bons olhos tê-los por perto, como uma maneira de controlar infestações de ratos.
Ou seja, todo o contexto de desequilíbrio ambiental somado à proximidade com os animais facilitou o contacto com o fungo, que passou a causar a doença em milhares de pessoas nas últimas duas décadas.
Embora estas observações ajudem a explicar como o surto provocado pelo Sporothrix brasiliensis surgiu, elas não permitem entender como o problema se espalhou para outros lugares além do Rio de Janeiro.
“Os gatos transitam por um território e podem atravessar fronteiras secas de Estados ou até de países”, diz Telles. “Além disso, podem ser transportados pelas pessoas que se mudam de bairro ou cidade”, complementa.
Outra possível explicação para a propagação está nos ratos. Alguns estudos mostram que esses roedores também podem ter o fungo — e ir de um lugar a outro durante o transporte de alimentos por caminhões ou navios.
Num novo local, os ratos são caçados pelos gatos que moram ali. Os felinos, por sua vez, acabam por ficar infetados e dão início a um novo ciclo de esporotricose.
Para completar, como esses animais carregam o fungo nas garras, na saliva e no sangue, podem transmiti-lo a seres humanos por meio de mordidas ou arranhões.
O que fazer?
Em comparação com outros fungos do mesmo género, o Sporothrix brasiliensis é mais virulento (ou seja, espalha-se com maior facilidade) e pode causar quadros infecciosos mais severos.
O tratamento também não é dos mais fáceis: nem sempre os remédios antifúngicos disponíveis funcionam à primeira.
A terapia medicamentosa costuma durar, em média, 187 dias, calcula um estudo recente da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
A chave, garantem outros artigos publicados nos últimos anos, está em fazer o diagnóstico correto e iniciar o tratamento o quanto antes.
Isso até evita a criação de resistência aos fármacos — esse, aliás, tem sido um problema frequente nos últimos anos com outras espécies de fungos, que estão a tornar-se cada vez mais difíceis de combater.
Para Rodrigues, casos como o do Sporothrix brasiliensis revelam como os desequilíbrios no meio ambiente causados pela ação humana têm consequências imprevisíveis.
“Há 15 anos, a esporotricose não era um problema. A alteração de ecossistemas propicia possíveis exposições a patógenos que, antes, não aconteciam”, diz. “E isso gera crises de saúde pública cada vez mais difíceis de enfrentar”, complementa.
ZAP // BBC