Enquanto o Canadá se prepara para alargar a abrangência da lei de eutanásia para incluir pessoas que sofrem de doenças mentais, parte da população — o que inclui muitos médicos — questiona se o programa de morte assistida do país está a avançar rápido demais.
A médica Madeline Li lembra-se da primeira paciente que ajudou a morrer, cerca de um mês depois de o Canadá legalizar a eutanásia em 2016. “Lembro-me de como foi surreal”, disse.
A psiquiatra do Hospital Princesa Margaret, de Toronto, tem grandes preocupações sobre a expansão da eutanásia no Canadá e do seu programa de morte assistida de forma que vá além dos doentes terminais. Li não está sozinha.
Desde 2016, o programa de assistência médica para morte no Canadá — conhecido por MAID — está disponível para adultos com doenças terminais.
Em 2021, a lei foi alterada para incluir pessoas com problemas físicos graves e crónicos, mesmo que essa condição não represente ameaça à vida.
Nova mudança
Este ano há a expectativa de que haja uma nova mudança, em que serão incluídos alguns casos de doenças mentais. Essa expansão da lei gerou controvérsia sobre o programa como um todo e levantou preocupações de que o caminho para pessoas vulneráveis morrerem no Canadá tenha sido facilitado em excesso.
Esses temores foram alimentados por uma série de relatórios recentes sugerindo que, para alguns, a morte foi usada como uma forma de escapar de uma vida em que a rede de segurança social já não os protege.
“Tornar a morte uma solução fácil demais prejudica as pessoas mais vulneráveis e, na realidade, isenta a sociedade das suas responsabilidades”, disse a médica. “Não acho que a morte deva ser a solução da sociedade para os seus próprios fracassos”.
A morte clinicamente assistida foi introduzida no Canadá por decisão da Justiça. Em 2015, o Supremo Tribunal do país decidiu que a proibição do suicídio assistido privava os canadianos da sua dignidade e autonomia. Deu ao Parlamento um ano para redigir uma legislação sobre o tema.
A lei de 2016 legalizou a morte assistida para canadianos com 18 anos ou mais com uma doença grave e irreversível, em que a morte era “razoavelmente prevista”.
Naquele primeiro ano, pouco mais de 1.000 pessoas submeteram-se ao suicídio assistido, número que tem crescido a cada ano. Em 2021, os números mais recentes disponíveis, houve 10.064 óbitos que se enquadram nessa legislação, representando 3,3% de todas as mortes no Canadá.
Sondagens indicam que os canadianos apoiam amplamente o acesso a pelo menos alguma forma de suicídio assistido.
A morte para os doentes terminais muitas vezes pode ser cruel e lenta, disseram médicos à BBC, com pacientes a passarem os seus últimos dias com a consciência afetada por medicação forte. A existência da morte assistida nesses casos, segundo esses médicos, tornou-se um bálsamo.
“Quase todas as vezes que considero um paciente elegível [para o programa], esse paciente para de se preocupar sobre como vai morrer e começa a perguntar-se como vai viver”, disse a médica Stefanie Green, presidente de uma associação canadiana de profissionais que trabalham com o programa.
“É objetivamente terapêutico dar a alguém essa opção”, disse Green.
Sem doença terminal
A expansão do programa no ano passado seguiu uma decisão judicial depois de duas pessoas de Montreal com doenças degenerativas recorrerem à Justiça.
Com isso, o Canadá entrou numa lista restrita de países, como Bélgica e Holanda, que permitem o suicídio assistido para pessoas que não enfrentam uma doença terminal.
A mudança permitiu que pessoas cuja única condição médica era uma doença mental fossem elegíveis para o programa. No entanto, os pedidos com base psiquiátrica teriam que esperar um prazo de dois anos até ao governo federal estabelecer padrões de segurança apropriados.
Assim, foram lançadas dúvidas sobre a inclusão de doentes não terminais.
Os primeiros críticos do programa incluem três especialistas em direitos humanos das Nações Unidas, que escreveram ao governo federal em 2021, alertando que a lei ampliada poderia desvalorizar a vida das pessoas com deficiência ao sugerir que uma condição grave era pior do que a morte.
Uma série de relatórios a sugerir que alguns canadianos optaram pela morte assistida em parte porque não podiam pagar por uma casa adequada também geraram temores de que o programa pudesse ser usado como uma solução para problemas sociais como pobreza, falta de habitação ou solidão extrema.
“Deixar as pessoas fazerem essa escolha [morrer] porque o Estado não cumpre os seus direitos humanos fundamentais é inaceitável”, disse Marie-Claud Landry, comissária-chefe da Comissão Canadiana de Direitos Humanos num comunicado em maio.
Outros apontaram para o que descrevem como frágeis salvaguardas do programa. “A lei é muito canadiana. Foi redigida de uma forma vaga para não ofender ninguém”, disse Li. A lei, afirma a médica, “não é específica o suficiente para proteger as pessoas”.
Inclusões de doenças mentais?
A inclusão de casos de saúde mental na proposta criou mais preocupações. No mês passado, sob críticas cada vez maiores, o governo canadiano disse que procuraria suspender a inclusão de doenças mentais (que estava prevista para começar em março deste ano) para permitir estudos adicionais.
“Queremos ser prudentes, queremos avançar passo a passo, para não cometer erros”, disse o ministro da Justiça, David Lametti.
Grande parte da controvérsia está no critério de “irremediabilidade” de uma doença mental — ou seja, se é incurável — e como isso pode ser avaliado. Essa é a condição para entrada no programa.
A Associação Canadiana de Saúde Mental alertou que “não é possível” determinar se algum caso particular de doença mental é incurável e opõe-se fortemente à mudança no programa para incluir essa condição.
Alguns psiquiatras importantes, como Karandeep Sonu Gaind, da Universidade de Toronto, disseram que as probabilidades de determinar se uma doença mental é irremediável são piores do que jogar cara ou coroa.
Agora não está claro quando é que a lei de morte assistida do Canadá será expandida para incluir doenças mentais. O ministro da Justiça não disse quanto tempo duraria a suspensão, mas não há indicação de que a pausa seja temporária, já que a medida provavelmente seria considerada inconstitucional nos tribunais.
“Estamos a ouvir e a ser responsivos”, disse Lametti no mês passado. “Sabemos que precisamos de fazer isto direito”.
Li comemorou a decisão do governo pelo adiamento, dizendo que os profissionais de saúde podem agora ter a oportunidade de estabelecer salvaguardas adequadas.
“O tempo para debater se ‘devemos fazer isso’ acabou”, disse ela. “O que precisamos de começar a falar é quando e como vamos fazer isso da forma correta”.
// BBC