Há, em Portugal, um Banco de vírus que está a ser “alimentado” há vários anos pela equipa da investigadora Joana Azeredo da Escola de Engenharia da Universidade do Minho, em Braga. Deste Banco saem vírus para hospitais estrangeiros para ajudar no tratamento de doenças provocadas por bactérias multirresistentes, no âmbito de uma terapia que não é usada em Portugal.
O grupo de trabalho que a professora Joana Azeredo lidera investiga, há muitos anos, vírus que infectam bactérias e que existem no ambiente, convivendo com os seres humanos. “Encontramos muitos nos afluentes e nas águas residuais“, explica ao ZAP a investigadora, salientando que a colecção tem vírus “puros, isolados e caracterizados” – “sabemos muito bem como se comportam, como interagem com as bactérias e, sobretudo, conhecemos o seu código genético”, vinca.
O Banco acolhe apenas vírus que infectam bactérias que causam doenças em humanos e tem “mais de uma centena de vírus novos”, “alguns deles até muito diferentes, de espécies diferentes que não tinham sido descobertas até agora”, nota Joana Azeredo, falando do seu “grande potencial do ponto de vista da terapia fágica”.
A terapia fágica mais não é do que a utilização de “vírus que infectam bactérias para o combate de doenças infecciosas provocadas justamente por bactérias”, como resume Joana Azeredo. São os chamados bacteriófagos e trata-se de um “conceito muito antigo” que surgiu no início do Século XX, numa altura em que não havia antibióticos, como realça a investigadora que, recentemente, se tornou na primeira portuguesa a baptizar um grupo de vírus – e apenas a quarta no mundo.
Após a descoberta de antibióticos, a terapia fágica “deixou de fazer sentido, ficando centrada a países da ex-União Soviética, à Geórgia, à Rússia e também à Polónia”, países que têm, actualmente, centros dedicados a esta abordagem terapêutica, relata ao ZAP Joana Azeredo.
Mas com o “problema muito grave” e crescente das “doenças infecciosas provocadas por bactérias resistentes a antibióticos“, Joana Azeredo salienta que outros países começaram também a olhar para a terapia fágica como uma opção “alternativa ou até complementar”, como é o caso de Bélgica, Holanda e França.
“Nunca foi usada em Portugal e é uma pena”
Os bacteriófagos “injectam o seu material genético nas bactérias e após replicação, com produção de novas partículas virais, rebentam e destroem as bactérias”, como esclarece a investigadora, lamentando que a terapia não seja ainda utilizada em Portugal.
No nosso país, a terapia fágica “não é utilizada em nenhuma circunstância, nem em “tratamento de compaixão”, diz Joana Azeredo referindo-se àquelas situações em que o paciente “está às portas da morte” e onde “não há antibiótico nenhum que consiga debelar a infecção”.
“Que eu saiba nunca foi usada e é uma pena que em Portugal não haja investimento nesta área”, aponta.
A nível da União Europeia também não há legislação para esta terapia que não está aprovada “do ponto de vista farmacológico”, por não ter havido ainda “ensaios clínicos suficientemente robustos” para a “poderem validar”, frisa Joana Azeredo. Mas, apesar disso, “está a ser usada em hospitais”, com a prescrição de cocktails de vírus que vão actuar directamente nas bactérias.
A equipa de Joana Azeredo tem colaborado com um Hospital na Bélgica que também tem um Banco de vírus, mas que recorre à sua colecção sempre que não encontra o vírus ideal para combater bactérias multirresistentes.
“A Bélgica é muito pioneira” porque “conseguiu, ao nível dos regulamentos, arranjar uma fórmula de tornar [a terapia] aplicável”, destaca a investigadora, realçando que outros países estão também a aproveitar esse modelo e a implementar esta abordagem terapêutica.
O Banco de vírus de Joana Azeredo também envia vírus para a Suíça e a França e, recentemente, foi chamado a ajudar num caso de um bebé com uma “infeção muito difícil de debelar na Alemanha” – neste caso, a equipa da investigadora tentou, em vão, encontrar um vírus para tratar o problema.
Assim, o Banco exporta vírus para outros países, mas “exportamos sem valor comercial, por amizade científica” e por pura “carolice”, trata de salientar Joana Azeredo.
Enquanto isso, a investigadora lamenta que “é uma pena termos toda a capacidade científica para avançar com isto e não investir em Portugal” nesta abordagem terapêutica.
Joana Azeredo considera que “ainda não houve força do ponto de vista clínico que tenha puxado para essa necessidade”, mas trata de salvaguardar que “não é uma ciência esotérica, nem uma terapia estranha” e que “está validada do ponto de vista científico”.
Agora, é preciso que as autoridades de Saúde a validem também para que “nenhum médico seja penalizado por aplicar esta terapia”, constata ao ZAP.
Farmacêutica alemã vai vender enzimas do Banco de vírus como medicamento
Na terapia fágica, não há manipulação nenhuma dos vírus – esta abordagem recorre, apenas, a cocktails de vírus que se encontram na natureza. É, basicamente, “usar a natureza para nos ajudar”, vinca Joana Azeredo.
A investigadora atesta que alguns destes vírus são “muito eficazes, mas não actuam em todas as doenças”, apresentando “limitações” que a sua equipa está a tentar colmatar em laboratório, com a criação de fagos sintéticos “por manipulação genética”, pegando no código genético dos vírus e alterando-o, para os tornar “mais eficientes e mais seguros”.
A professora da Universidade do Minho espera, agora, por legislação adequada para que “o próximo passo seja poder utilizar estes fagos sintéticos, claro que muito confinados – não podem ir para o ambiente e temos que ter algum cuidado“, assume em declarações ao ZAP.
Reforçando que “já existem terapias com vírus sintéticos, oncológicas inclusive que utilizam vírus geneticamente manipulados”, Joana Azeredo nota que os fagos sintéticos que são desenvolvidos pela sua equipa estão em fase de testes em animais e, para já, os resultados são promissores.
“Já provamos, quer in vitro, quer em modelos de invertebrados, que são muito eficazes e bastante seguros, mas faltam ainda muitas validações até chegar a um produto final”, releva, frisando que isso “exige muito investimento” e que o seu laboratório não tem “essa capacidade financeira”.
As investigações da equipa de Joana Azeredo têm sido financiadas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) e também por fundos comunitários, através do programa Horizonte 2020 e da ESCMID – Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas.
O Banco de vírus também tem “contratos com a indústria”, nomeadamente “um contrato com uma empresa alemã na área da farmacêutica” que já adquiriu “duas das patentes” desenvolvidas pela equipa de Joana Azeredo para fazer a sua “exploração industrial”.
Estão em causa “patentes relativas a enzimas que foram produzidas com base no código genético de vírus e que estão também a ser utilizadas como alternativa aos antibióticos no combate de bactérias”, conta a investigadora ao ZAP.
Neste momento, decorrem os ensaios clínicos e o objectivo é que estas enzimas venham a ser usadas como medicamentos contra as bactérias pseudomonas aeruginosa que são resistentes a antibióticos e surgem, muitas vezes, em contextos hospitalares, nomeadamente após cirurgias.