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Já se conhece o novo rosto do povo de Luzia, o mais antigo fóssil humano brasileiro

(dr) Caroline Wilkinson

Reconstrução facial de um homem pertencente ao povo de Luzia

Um homem que viveu há dez mil anos em território agora brasileiro acaba de ter o seu rosto recriado, incorporando novos dados genéticos sobre a sua população.

O fóssil de Luzia, um dos esqueletos humanos mais antigos das Américas, descoberto no Brasil em 1975, ficou conhecido após o incêndio que destruiu o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Setembro. Mas, apesar desta tragédia, foram recuperados cerca de 80% dos seus ossos.

Agora, e pela primeira vez, conseguiu-se extrair ADN de fósseis do povo de Luzia, em conjunto com uma análise genética em larga escala de esqueletos de pessoas que viveram há vários milénios pelas Américas, e, assim, reconstituiu-se uma parte da história complexa das migrações humanas deste continente muito antes da chegada dos europeus.

Através destas informações genéticas, fez-se uma nova reconstituição facial do povo de Luzia. E eis o resultado final: o novo rosto deste povo.

O fóssil foi descoberto na região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais, numa missão franco-brasileira liderada pela arqueóloga Annette Laming-Emperaire, e pertence a uma mulher, que teria à volta de 20 anos na altura da morte.

Mas entre a sua descoberta e a sua valorização científica, passaram-se 20 anos em que não houve qualquer tipo de investigação.

Em 1995, o antropólogo e arqueólogo Walter Alves Neves estudou a morfologia do crânio de Luzia e batizou-a com este nome numa alusão a Lucy, o fóssil famoso de uma fêmea com 3,5 milhões de anos de Australopithecus afarensis, descoberto na Etiópia em 1974.

A partir do estudo da forma dos crânios de Lagoa Santa, incluindo o de Luzia, Walter Alves Neves  propôs que os grupos de humanos que habitavam há dez mil anos essa região tinham uma ligação recente a populações de África, da Melanésia e Austrália.

Assim, o povo de Luzia não seria nativo americano, mas sim não-ameríndio, representando uma população que teria chegado à América antes dos antepassados dos ameríndios atuais. Isto porque, segundo esta hipótese denominada “paleoamericana”, a forma do seu crânio era diferente da dos ameríndios de hoje.

O especialista britânico Richard Neave fez uma reconstituição facial de Luzia baseando-se nesta hipótese de Walter Neves ainda na década de 1990, tendo sido apresentada como tendo uma fisionomia marcadamente africana.

Agora, estes novos resultados baseiam-se em análises de ADN extraído pela primeira vez de dez esqueletos de Lagoa Santa e vêm indicar que Luzia e os seus conterrâneos não tinham uma ligação recente a grupos humanos da Melanésia ou da Austrália. Afinal, Luzia e o seu povo já eram de origem ameríndia, avança o Público.

“A forma do crânio não é um marcador confiável de ancestralidade ou de origem geográfica. A genética, por seu lado, é a técnica que se presta por excelência a esse tipo de inferência”, acrescenta o comunicado sobre esta investigação, publicada esta quinta-feira na Cell.

Desta forma, a nova fisionomia apresenta um indivíduo masculino, pertence ao povo de Luzia. Desta vez, a recriação forense ficou a cargo da antropóloga Caroline Wilkinson, da Universidade John Moores, em Liverpool.

A especialista britânica utilizou um modelo digital retrodeformado do crânio antigo de um homem da região de Lagoa Santa. “É comum que os fósseis sejam deformados com a passagem do tempo. Esse método remove essa deformação usando algoritmos matemáticos em ambiente virtual 3D”, explica-nos André Strauss, um dos autores do artigo.

“Por mais acostumados que estejamos com a tradicional reconstrução facial de Luzia, com traços fortemente africanos, a nova reconstrução reflete de forma muito mais precisa a fisionomia dos primeiros habitantes do Brasil, apresentando traços generalizados e indistintos a partir dos quais, ao longo de milhares de anos, a grande diversidade ameríndia se estabeleceu”, adianta o comunicado.

Mas, se não veio de uma onda migratória recente da Melanésia ou da Austrália, então de onde veio o povo de Luzia?

Há mais de 20 mil anos não havia pessoas nas Américas. Mas, nessa altura, havia já uma população vinda da Ásia instalada na região onde hoje é o estreito de Bering. Na altura, em vez do estreito de Bering, havia uma ponte terrestre, a Beríngia, que os beringianos antigos começaram a utilizar para avançar pelo continente americano adentro.

Foi desta forma que há 20 mil anos, segundo os dados arqueológicos e genéticos, começou a chegar ao Novo Mundo uma única população numa onda migratória.

Cultura Clóvis

Os autores desta artigo, conforme explica o jornal, estabeleceram uma relação até agora totalmente desconhecida entre os humanos da cultura Clóvis e o povo de Luzia, configurando assim uma das maiores descobertas deste estudo.

Apesar de nunca terem sido encontrados artefactos da cultura Clóvis na América do Sul, o que sugeria que este povo não tinha migrado para sul, a genética trouxe relevações que suporta que havia pontos em comum quanto à ancestralidade destes dois povos.

Isto significava que o povo Clóvis não se tinha limitado a ficar na América do Norte e prosseguiu até à América do Sul, misturando-se com populações que não fabricavam as ferramentas típicas desta cultura, deixando descendentes em várias regiões

“A nossa descoberta principal é que um indivíduo da América do Norte associado à cultura Clóvis, com cerca de 12.800 anos, partilha uma ancestralidade distintiva com os indivíduos mais antigos do Chile, Brasil e Belize”, resume Cosimo Posth, num comunicado da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard.

No fundo, podemos resumir que a expansão de pessoas que disseminaram a cultura Clóvis na América do Norte alcançou também a América Central e do Sul.

“Surpreendentemente, o povo de Luzia, que se imaginava ter uma ancestralidade não-ameríndia, revelou-se como uma dessas populações descendentes de Clóvis”, conclui a nota da Universidade de São Paulo.

Liliana Malainho, ZAP //

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