No imaginário popular, são recorrentes os restratos destas duas personagens bíblicas como um par romântico. De onde vem esta história?
Os cristãos costumam torcer o nariz para tais teorias, condenando-as não só ao desmerecimento como também ao pecado.
Mas pesquisas que se baseiam nos chamados “evangelhos apócrifos”, textos tão antigos quanto os que compõem o Novo Testamento mas que acabaram por ser relegados pela Igreja Católica, já encontraram indícios de um envolvimento amoroso entre Jesus e Maria Madalena.
Para especialistas contemporâneos, contudo, embora não haja consenso, é preciso cuidado para que as palavras ali contidas não sejam interpretadas com sentido e contextos de hoje.
“A maioria dos apócrifos que fazem referência a esse ‘caso’, nunca citam Madalena, na verdade, como ‘esposa de Jesus’. Fala-se sobretudo que ela era a discípula predileta de Jesus e uma grande ‘companheira’, uma palavra que, se não tivermos cuidado com o anacronismo, pode gerar inúmeras interpretações”, pondera a vaticanista Mirticeli Medeiros, investigadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Para a investigadora Wilma Steagall De Tommaso, doutorada em ciências da religião e autora do livro Maria Madalena: História, Tradição e Lendas (Paulus Editora), não há nada historicamente que possa validar essas teorias de relacionamento amoroso entre Madalena e Jesus.
“Nem mesmo os textos apócrifos gnósticos comentam esse relacionamento. Na sua maioria falam do relacionamento de Maria Madalena com Jesus já ressuscitado”, acrescenta De Tommaso.
É o que pensa também o historiador e escritor norte-americano radicado na Inglaterra Michael Haag, autor do livro Maria Madalena: Da Bíblia ao Código da Vinci: Companheira de Jesus, Deusa, Prostituta, Ícone Feminista.
Na obra, Haag defende a tese de que Madalena tenha sido, sim, muito próxima e íntima de Jesus, mas somente do ponto de vista espiritual.
Quem foi Maria Madalena
O mistério começa pela própria identidade de Madalena, uma mulher sobre quem pouco se sabe. Acredita-se que tenha sido denominada assim porque seria originária de Magdala, cidade na costa do Mar da Galileia (hoje norte de Israel).
“Ela é uma das mulheres mais incógnitas da Bíblia”, comenta o hagiólogo Thiago Maerki, estudioso de cristianismo antigo e membro da Hagiography Society, nos Estados Unidos.
“De um lado, ela é santa, aquela que se converteu. Por outro, é a prostituta, que depois se torna amante ou mulher de Jesus.”
“A Maria Madalena histórica vem de uma tradição constituída na oralidade a partir do pós-mortem de Jesus”, pontua o historiador André Leonardo Chevitarese, professor titular do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Jesus de Nazaré: O Que a História Tem a Dizer sobre Ele, entre outros.
Chevitarese aponta que há menções a Madalena em dois daqueles que estão entre os mais antigos escritos do cristianismo: o apócrifo “Evangelho dos Sinais”, possivelmente do final dos anos 60 do primeiro século; e o canónico “Evangelho de Marcos”, da década seguinte.
Nos textos canônicos, ela é mencionada nominalmente 17 vezes, sempre nos evangelhos. Nos livros seguintes, que passam a relatar a vida dos primeiros cristãos e as mensagens deles ao mundo da época, Maria Madalena é uma figura esquecida — ou apagada. As suas aparições são importantes, indicando que ela teria sido uma seguidora muito próxima de Jesus.
Se ela primeiro é descrita como uma mulher de quem o poderoso filho de Deus expulsa “sete demónios” — passagem que originou o mito de que Maria Madalena teria sido uma prostituta —, depois aparece em momentos cruciais.
Teria sido uma das testemunhas da crucificação e a que, segundo o evangelista Marcos, viu onde o corpo de Jesus foi sepultado e, por isso, acabou por encontrar o sepulcro aberto no episódio que ficou conhecido como a ressurreição de Cristo.
No criativo espaço das lendas, há uma história bastante curiosa na qual alguns acreditam. O primeiro milagre realizado por Jesus, conforme a Bíblia, teria sido a transformação da água em vinho numa festa de casamento.
Os textos sagrados, contudo, não mencionam os nomes dos noivos. Segundo uma crença bastante difundida, o casal teria sido Maria Madalena e João Evangelista. Na anedota popular, o desdobramento desse milagre teria sido não uma bênção para o casal, mas o fim relâmpago do seu matrimónio.
Porque Evangelista, ao presenciar a transformação, abandona a sua recém-oficializada esposa em nome do projeto messiânico liderado por Jesus — para integrar o grupo dos 12 apóstolos.
Maria Madalena, deixada pelo marido, acabaria por fazer da prostituição o seu ganha-pão. E só seria salva muito tempo depois, quando seria resgatada pelo próprio Jesus e se tornaria uma seguidora também.
No que tange aos evangelhos oficiais, as pistas de um relacionamento amoroso entre ambos são poucas e pontuais. Maerki cita duas passagens.
No “Evangelho de João”, no relato que se segue à morte de Jesus, há o episódio em que ele aparece a Maria Madalena quando ela chora diante do túmulo vazio.
“E lhe pergunta: ‘Mulher, porque estás a chorar?’”, narra o hagiólogo.
“Segundo consta, a palavra grega para mulher que aparece no texto original pode se referir a esposa, à ideia de ‘minha mulher’. Isso acabou por dar respaldo para essa interpretação, a de que eles formavam, no fundo, um casal.”
A outra pista também seria o que ocorreu logo após a morte de Jesus. Maria Madalena é apresentada, nos textos sagrados, como aquela que foi incumbida de cuidar do sepulcro — por isso teria sido a primeira a encontrar o túmulo vazio.
“Depois que Jesus foi sepultado, a tradição bíblica diz que coube a Maria Madalena limpar, tratar do corpo do morto. Ora, Jesus era chamado de rabino [chefe religiosos de uma comunidade judaica]. Os rabinos casam-se. E seria impensável uma mulher tocar o corpo de um homem morto, preparar o corpo, se não fosse alguém da família, se não fosse ela a mulher, a esposa”, reflete Maerki.
Beijo na boca
Já nos textos considerados apócrifos, as teorias vão mais longe. Chevitarese lembra do ‘Evangelho de Filipe’, fragmentos encontrados em 1945 junto a outros tantos documentos preciosos em Nag Hammadi, no Egito.
“Ele fala que Jesus e Maria Madalena se beijavam na boca. Só esse dado já condiciona [com o olhar atual] o elemento erótico ali”, explica Chevitarese.
“No entanto, quando se lê o ‘Evangelho de Filipe’ inteiro e o situa dentro desse ambiente cristão gnóstico, não há nada de erótico ali. Para eles, beijar na boca significava passar o conhecimento de um ser puro para outro ser puro.”
A companheira de Jesus
Mas talvez a escritura antiga mais contundente sobre essa relação amorosa seja “A História Eclesiástica de Zacharias Rhetor”, um manuscrito possivelmente datado do século VI, escrito em siríaco — dialeto do aramaico.
O jornalista israelita-canadiano Simcha Jacobovici e o historiador canadiano Barrie Wilson esmiuçaram o material publicaram em 2014 o livro The Lost Gospel: Decoding the Ancient Text that Reveals Jesus’ Marriage to Mary the Magdalene (em tradução livre, O Evangelho Perdido: Decodificando o Texto Antigo que Revela o Casamento de Jesus com Maria Madalena).
Na obra, eles explicam que o tal manuscrito antigo revela a história desconhecida da juventude de Jesus, na casa dos seus 20 anos, as suas ligações com figuras políticas do império romano e, principalmente, o relacionamento com Maria Madalena, com quem se teria casado e tido dois filhos.
Em 2012, veio à luz pela primeira vez o fragmento de um texto com as palavras “Jesus disse-lhes: ‘a minha esposa…”. Mas é provavelmente uma falsificação.
O documento, em copta (língua surgida no Egipto no século 3 d.C.), seria uma tradução do século 14 de um texto escrito no segundo século, originalmente em grego. E foi apresentado por investigadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Acabou conhecido como ‘Evangelho da Mulher de Jesus’.
A revelação causou polémica, mas devido a semelhanças com textos anteriormente conhecidos da mesma época, vários investigadores passaram a levantar dúvidas sobre a sua legitimidade.
“Por isso, muitos historiadores preferem considerá-lo não muito digno de atenção”, avalia Medeiros.
ZAP // BBC