Assim olham os astrónomos extraterrestres para a química da nossa Galáxia

Jingyi Zhang / NASA

Os investigadores reconstruíram o que os astrónomos extraterrestres, que observam a nossa Via Láctea à distância, encontrariam se analisassem a composição química da nossa Galáxia.

O estudo, liderado por investigadores do Instituto Max Planck de Astronomia, é relevante para a nossa própria compreensão do cosmos: permite um novo tipo de comparação entre a nossa Galáxia natal e as muitas galáxias distantes que observamos do exterior.

Os resultados fornecem parte da resposta à velha questão de saber se a nossa Galáxia é especial: pelo menos no que diz respeito à composição química, a Via Láctea é invulgar, mas não única.

Vemos galáxias distantes a partir do exterior: as observações telescópicas mostram-nos a forma de uma galáxia e o seu espetro (a decomposição em arco-íris da luz de uma galáxia).

Então, como seria a nossa Galáxia dessa perspetiva, para um astrónomo alienígena distante?

Esta é uma pergunta enganadoramente simples. Afinal de contas, os astrónomos aqui na Terra criaram formas bastante engenhosas de deduzir as propriedades de uma galáxia a partir do que observamos e os astrónomos extraterrestres terão provavelmente uma visão igualmente sofisticada da Via Láctea.

Para os métodos de análise ainda mais sofisticados, não é nada fácil dizer o que os astrónomos extraterrestres encontrariam se aplicassem esses métodos à nossa Via Láctea.

Mas a recompensa pode ser considerável, diz Jianhui Lian, investigador do Instituto Max Planck de Astronomia e Universidade de Yunnan, o principal autor do estudo agora publicado na Nature Astronomy.

“Precisamos de encontrar formas de comparar a nossa Galáxia natal com galáxias mais distantes se quisermos saber se a Via Láctea é especial ou não. Esta tem sido uma questão em aberto desde que os astrónomos se aperceberam, há cem anos, que a Via Láctea não é a única galáxia do Universo”, acrescenta Lian.

Grandes avanços

Por muito antiga que seja a questão, parece que a astronomia está agora numa boa posição para encontrar uma resposta sólida.

Por um lado, na última década, tem havido um enorme progresso nos estudos sistemáticos da nossa Galáxia natal. Houve estudos, como o APOGEE, que forneceram informações sobre a composição química, as propriedades físicas e os movimentos tridimensionais de milhões de estrelas individuais na nossa Via Láctea, deduzidos a partir dos seus espetros.

A missão espacial Gaia da ESA monitorizou o brilho, o movimento e a distância de cerca de 1,5 mil milhões de estrelas na nossa Galáxia. Há também muito mais e melhores dados sobre galáxias distantes.

O levantamento MaNGA estudou em profundidade cerca de 10.000 galáxias. Enquanto que os estudos anteriores que visavam este número de galáxias apenas forneceriam um espetro global por galáxia, o MaNGA pinta uma “imagem espetral”, mostrando como, por exemplo, a composição química de cada galáxia varia do centro para as regiões exteriores.

Por último, mas não menos importante, existem agora simulações modernas da formação e evolução de galáxias, como a simulação TNG50 que segue a história de milhares de galáxias num universo modelo, desde o Big Bang até à atualidade.

Todos estes desenvolvimentos foram necessários para podermos prever o que os astrónomos extraterrestres veriam quando apontassem os seus telescópios para a Via Láctea e tentassem reconstruir a composição química da Galáxia.

Estar no lugar dos astrónomos extraterrestres

Foi exatamente isso que fez um novo estudo liderado por Lian e Maria Bergemann, também investigadora do Instituto Max Planck de Astronomia.  Especificamente, Lian, Bergemann e os seus colegas analisaram a composição química das estrelas.

As estrelas que vemos à nossa volta são constituídas, na sua maioria, por hidrogénio e hélio, mas há uma pequena quantidade de elementos mais pesados do que o hélio – elementos que, em astronomia (mas não na química comum!) são chamados “metais“.

Alguns destes metais são produzidos no interior das estrelas e lançados para o espaço quando as estrelas massivas explodem no fim das suas vidas. Outros são produzidos nas camadas exteriores de estrelas gigantes inchadas e, a partir daí, são lançados para o espaço.

E o mais importante é que existe uma tendência geral: A concentração de metais no meio interestelar – a mistura de baixa densidade de gás e poeira que preenche o espaço entre as estrelas – aumenta com o tempo.

As estrelas que nasceram mais cedo contêm menos metais, as que nasceram mais tarde contêm mais. Mapear as regiões de uma galáxia que têm estrelas com menos ou mais metais diz-nos que região formou as suas estrelas mais cedo e que região formou as suas estrelas mais tarde.

Da cosmologia local a uma perspetiva extraterrestre

A nossa Galáxia, a Via Láctea, é atualmente a única galáxia espiral em que podemos fazer diretamente um levantamento em grande escala de estrelas individuais – medir as suas posições dentro da nossa Galáxia e, através dos seus espetros, o seu conteúdo metálico, a temperatura da superfície e outras propriedades físicas.

Lian, Bergemann e os seus colegas propuseram-se reconstruir o que os astrónomos extraterrestres veriam se mapeassem a prevalência de metais na Via Láctea.

Uma vez que a nossa Galáxia é uma galáxia em disco, a questão-chave é: como é que um astrónomo extraterrestre distante veria a abundância de metais variar em função da distância de uma região ao centro da nossa Galáxia?

Este tipo de reconstrução requer trabalho. Os dados do estudo APOGEE foram apenas o ponto de partida. Em seguida, os investigadores tiveram de ter em conta o facto de, a partir da Terra, termos uma visão “manchada” da Via Láctea: em algumas direções, haverá mais poeira entre nós e as estrelas mais distantes, atenuando a luz das estrelas e escondendo algumas das estrelas mais fracas. Noutras direções, haverá menos poeira.

Os investigadores tiveram de combinar os dados de observação com o que sabemos sobre a poeira e sobre as propriedades das estrelas, de modo a reconstruir a verdadeira distribuição das estrelas na nossa Galáxia.

A “cintura” de alta metalicidade da nossa Galáxia

Os resultados foram algo surpreendentes. Se seguirmos a média do conteúdo metálico das estrelas do centro da Galáxia para o exterior, este irá aumentar, atingindo um conteúdo metálico próximo do do nosso Sol a uma distância de cerca de 23.000 anos-luz do centro (para comparação: o nosso Sol está a cerca de 26.000 anos-luz do Centro Galáctico).

A uma distância ainda maior, o teor médio de metais volta a diminuir, caindo para cerca de um-terço do valor solar a cerca de 50.000 anos-luz do centro.

Para compreender o que se passava, os investigadores analisaram separadamente estrelas de diferentes grupos etários – os espetros do APOGEE permitem pelo menos uma estimativa aproximada da idade estelar.

Analisando separadamente estrelas mais jovens e mais velhas, descobriram que cada grupo etário seguia basicamente uma tendência ininterrupta, com maior teor metálico mais perto do centro e menor teor mais longe.

O aumento e o máximo da distribuição global devem-se puramente ao facto de as estrelas mais velhas (com um teor de metal muito mais baixo) serem mais abundantes perto do Centro Galáctico e, portanto, puxarem para baixo a média global, mas com as estrelas mais jovens a tornarem-se mais frequentes mais longe.

Comparação com outras galáxias

Lian, Bergemann e os seus colegas compararam este resultado interessante com as propriedades de outras galáxias.

Por um lado, consideraram 321 galáxias do levantamento MaNGA, todas com massas semelhantes à da Via Láctea, que produzem quantidades semelhantes de estrelas e que são todas visíveis de face, pelo que a alteração da metalicidade média pode ser medida.

Por outro lado, os investigadores utilizaram os mesmos critérios para identificar 134 galáxias semelhantes à Via Láctea no universo modelo da simulação TNG50.

Então, quão especial é a nossa Galáxia natal – ou não? A resposta é dada pelo presente estudo: quando se trata da distribuição de abundâncias metálicas, a nossa Via Láctea é invulgar, mas não única.

Apenas 11% das galáxias da amostra TNG50 e cerca de 1% das galáxias da amostra MaNGA mostraram uma subida e descida semelhante da metalicidade média. A discrepância entre 11% e 1% deve-se provavelmente a uma combinação de incertezas nos dados MaNGA e à limitação de simulações realistas no universo do modelo TNG50.

Além disso, nas regiões exteriores, a diminuição da metalicidade média com o aumento da distância ao centro é bastante mais acentuada para a Via Láctea, em comparação com as galáxias MaNGA e TNG50.

A questão do “porquê”

E porque é que a Via Láctea tem as propriedades invulgares que tem, e o que é que essas propriedades significam para a história da formação da nossa Galáxia?

várias maneiras de explicar a escassez comparativa de estrelas ricas em metais perto do Centro Galáctico. Esta caraterística pode estar relacionada com a formação do chamado bojo, uma região aproximadamente esférica de estrelas mais velhas que rodeia o Centro Galáctico até uma distância de cerca de 5000 anos-luz.

A formação do bojo teria utilizado a maior parte do hidrogénio gasoso disponível, tornando muito mais difícil a posterior formação estelar. Alternativamente, a escassez pode estar relacionada com uma fase ativa em que o buraco negro supermassivo central da nossa Galáxia expeliu partículas e radiação da sua vizinhança imediata, inibindo a formação estelar.

A metalicidade nas regiões exteriores pode ser explicada por vários cenários que combinam a evolução do gás na nossa Galáxia com a história da formação estelar no disco galáctico.

O declínio acentuado pode ser o sinal de um episódio invulgar na história da nossa Galáxia – por exemplo, a nossa Galáxia natal “engoliu” uma galáxia mais pequena com gás que continha muito poucos metais. Esse gás teria mais tarde servido de matéria-prima para a formação de estrelas com menos metais no disco.

Também é possível que a nossa estimativa da extensão do disco estelar da Via Láctea esteja errada e que este erro distorça a comparação com outras galáxias quando se trata de saber quão acentuada é a diminuição.

Perspetivas

Maria Bergemann diz sobre os novos resultados: “os achados são muito interessantes! É a primeira vez que podemos comparar de forma significativa o conteúdo químico detalhado da nossa Galáxia com as medições de muitas outras galáxias”.

“Os resultados são importantes para a próxima geração de estudos exaustivos sobre a formação galáctica. Esses estudos utilizarão dados de futuros programas de observação em grande escala dirigidos para a Via Láctea ou para galáxias distantes”, acrescenta.

“A nossa investigação mostra como combinar sensatamente os dois tipos de conjuntos de dados”, conclui Bergemann.

Ainvestigação aqui descrita levanta uma série de questões interessantes. Com novos levantamentos e novos estudos que explorem uma perspetiva de “astrónomo alienígena”, podemos esperar encontrar respostas e compreender melhor a história da nossa Galáxia.

// CCVAlg

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