Todo o Iraque parou para o “censo mais perigoso do mundo”

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DVIDS

Crianças em fila durante  entrega de material escolar no bairro de Waddi, em Mossul, Iraque

Último censo no país árabe aconteceu sob Saddam Hussein. Desde então, receios quanto ao equilíbrio político baseado na distribuição étnico-religiosa refrearam iniciativas nesse sentido.

Durante os últimos dois dias, todo o Iraque esteve sob recolher obrigatório: as fronteiras permaneceram abertas, mas entre 43 milhões e 46 milhões de cidadãos comuns receberam instruções para não ir ao trabalho nem à escola.

As restrições relativas a esta quarta e quinta-feira nada têm a ver com outros conflitos em curso no Médio Oriente: pela primeira vez em quase quatro décadas, realiza-se no país árabe um recenseamento completo para aferir não só o número de habitantes, mas também o que fazem e como vivem.

Munidos de tablets eletrónicos, entre 120 mil e 140 mil recenseadores especialmente treinados apresentarão mais de 70 perguntas. As autoridades iraquianas prometeram dados preliminares dentro de 24 horas e resultados completos no prazo de dois meses.

Situação explosiva em todo o país

Enquanto políticos argumentam que o censo é essencial para o desenvolvimento nacional, existem dúvidas quanto às suscetibilidades políticas e até ao potencial perigo desta “contagem de cabeças”, que influenciará aspetos da sociedade iraquiana, desde a infraestrutura até à saúde e educação.

“A situação é explosiva em todo o país”, afirma Adel Bakawan, diretor do Centro de Investigação sobre o Iraque, sediado em Paris. Isto “porque não foi resolvida nenhuma das questões centrais entre os diferentes componentes da sociedade iraquiana – muçulmanos xiitas e sunitas, curdos.”

Para a maioria xiita, o censo é um “imperativo nacional”, enquanto os sunitas “encaram-no como um mecanismo de dominação xiita sobre o país“, e para os curdos trata-se de “uma arma acionada pelo governo central contra eles”, explica Bakawan.

O último recenseamento a nível nacional realizou-se em 1987; o de 1997, sob Saddam Hussein, excluiu as regiões curdas. Em 2003, após a invasão pelos Estados Unidos, o ditador foi derrubado, e uma nova contagem programada para 2007 foi sucessivamente adiada, devido a receios de desestabilização nacional.

Durante nova tentativa em 2009, vários recenseadores foram mortos por atiradores em Mossul.

No vizinho Líbano, onde a situação étnica é semelhante, não há recenseamentos há mais de 90 anos, por receios sociais semelhantes.

Territórios disputados e funcionários-fantasma

Mas há outros motivos para a demora na realização de um novo censo. Desde 2003, o sistema político do Iraque baseia-se num esquema de quotas estabelecido pelos administradores norte-americanos, para evitar conflitos pelo poder. O primeiro-ministro é sempre xiita, o líder do parlamento, sunita, e o presidente, curdo, garantindo que os principais grupos demográficos estejam politicamente representados.

Um censo que forneça uma imagem atual e mais precisa das comunidades iraquianas pode quebrar esse equilíbrio. Bakawan prevê que será necessário aumentar o número de assentos no parlamento, de 329 para cerca de 450, uma vez que a lei prevê um representante por cada 100 mil habitantes.

Além disso, os iraquianos tendem a votar dentro da sua própria comunidade étnico-religiosa: “Assim, dado que a taxa de natalidade entre os curdos é de 1,9, e entre os xiitas, de 4,99, estes deverão reafirmar ainda mais a sua dominância demográfica.”

No entanto, qualquer alteração no equilíbrio de poder no parlamento e nas câmaras locais pode gerar novas tensões entre os diferentes grupos. Outro aspeto polémico de um censo no Iraque são os chamados “territórios disputados”, que os curdos consideram parte da sua região semi-autónoma no norte, mas que o governo afirma pertencerem à federação.

A Constituição nacional de 2005 estabelece que a solução para este impasse deve incluir um censo, mostrando quem vive realmente nas áreas em questão. Contudo, a contagem poderá resultar em respostas que não agradem nem aos curdos nem aos árabes.

As receitas do petróleo são outro fator problemático: em 2023, resultaram numa média mensal de cerca de 8 mil milhões de dólares (cerca de 7,4 mil milhões de euros). O montante deveria ser distribuído equitativamente entre as províncias, sendo que as menos populosas receberiam menos verbas estatais.

Os “funcionários-fantasma” são mais um problema que o recenseamento pode abordar: supostamente, dezenas de milhares de iraquianos mantêm vários empregos ao mesmo tempo, inclusive no governo federal, subornando os chefes com parte do seu salário para manter o emprego sem precisar de comparecer ao trabalho.

“Não são só números: são narrativas”

Bagdade tentou contornar estes e outros problemas removendo do formulário as perguntas sobre etnicidade ou religião. Na opinião do diretor para o Médio Oriente e Norte de África do think tank Crisis Group, Joost Hiltermann, isso reduz o potencial perigoso da iniciativa.

“Recenseamentos padrão por todo o mundo não incluem a questão da etnicidade, pois esta tende a gerar questionamentos politicamente voláteis sobre o tamanho relativo dos grupos étnicos.” Assim, a decisão das autoridades iraquianas de retirar o item torna o censo “muito menos delicado” do ponto de vista político.

Relativamente às apreensões quanto aos “territórios disputados”, o governo federal concordou em tomar o censo de 1957, anterior à ditadura de Hussein, como base para aferir a população curda em locais sensíveis como Kirkuk. Contudo, há quem critique estas resoluções como táticas políticas que reduzirão o significado da contagem.

“Não se trata apenas de números, são ‘narrativas’ demográficas”, argumentava em maio o analista político local Yahya al-Kubaisi num artigo editorial para o jornal Al-Quds Al-Arabi. “Estas foram transformadas em dados que produzem medidas políticas, estes números refletem-se em tudo”, pelo que estas categorias não devem ser ignoradas.

Apesar de tudo, Hiltermann, do Crisis Group, acredita que o impacto geral será positivo: “O censo fornece informação vital sobre a sociedade iraquiana à medida que ela evolui, sobretudo após uma lacuna tão longa. É essencial para o desenvolvimento. Pode haver ou não corrupção, mas com informações precisas e atualizadas, pelo menos pode-se lançar uma estratégia de desenvolvimento baseada na realidade.”

O especialista enfatiza a vantagem de excluir os dados relativos ao volume dos diferentes grupos: “Os iraquianos devem ser, acima de tudo, cidadãos, e ser tratados como tal pela estratégia governamental. Dividir a sociedade em grupos étnicos, como aconteceu no Líbano e no Iraque, só aumenta o risco de conflito violento.”

// DW

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1 Comment

  1. Os EU deixaram o Iraque a arder. Os guardiões do mundo espalham o “bem” por todo o lado do planeta!

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