Sintomas são consequência da picada da carraça e só se manifestam mais tarde, até três meses depois. A síndrome alfa-gal pode ser fatal. Saiba tudo sobre ela.
Horas depois de saborear aquele bife perfeitamente grelhado numa bela noite de verão, o corpo revolta-se, declarando guerra à própria refeição que acabou de apreciar. Começa a sentir comichão intensa, dor ou até inchaço, que pode escalar ao ponto de exigir cuidados médicos de urgência.
O culpado não é uma intoxicação alimentar — é a consequência de uma picada de carraça que pode ter tido lugar meses antes, sem que sequer se tenha apercebido.
Esta reação alérgica tardia chama-se síndrome alfa-gal. Embora seja vulgarmente conhecida como “alergia à carne vermelha”, esse apelido é enganador, pois a síndrome alfa-gal pode provocar reações fortes a muitos outros produtos.
A síndrome está também a espalhar-se rapidamente nos EUA e em várias partes do mundo. Os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) estimam que até 450 mil pessoas nos EUA possam ter esta condição. E é transmitida por muito mais espécies de carraças do que a maioria das pessoas imagina.
O que é a síndrome alfa-gal?
A síndrome alfa-gal é, na verdade, uma alergia a uma molécula de açúcar com um nome complicado: galactose-alfa-1,3-galactose, abreviada para alfa-gal.
Esta molécula de açúcar está presente nos tecidos da maioria dos mamíferos, incluindo vacas, porcos, veados e coelhos. Mas está ausente nos humanos. Quando uma dose significativa de alfa-gal entra na corrente sanguínea através de uma picada de carraça, pode ativar uma forte resposta do sistema imunitário, levando à produção de anticorpos contra o alfa-gal. Em exposições futuras a alimentos que contenham esta molécula, o sistema imunitário pode desencadear uma resposta alérgica inadequada.
Frequentemente, esta alergia é desencadeada pela ingestão de carne vermelha. Mas também pode ser provocada por outros produtos de origem animal, incluindo laticínios, gelatina (como a usada em gomas ou gelatinas), medicamentos e até produtos de higiene pessoal.
Um exemplo é a heparina, um medicamento anticoagulante usado durante cirurgias, que é extraído de intestinos de porco e já provocou reações graves em pessoas com esta síndrome.
Depois de desenvolver a síndrome alfa-gal, é possível superar a alergia — se a dieta for cuidadosamente ajustada para evitar novas reações durante alguns anos e se forem evitadas novas picadas de carraças. Mas isso exige tempo e atenção a gatilhos menos óbvios.
Porque mais pessoas estão a ser diagnosticadas
Como entomologista que estuda insetos e as doenças que transmitem, o que considero preocupante é a velocidade com que esta alergia se está a espalhar globalmente.
Há alguns anos, os especialistas pensavam que a síndrome alfa-gal se limitava sobretudo ao sudeste dos EUA, por estar associada à carraça Lone Star, cuja distribuição geográfica era restrita a essa região.
Contudo, já foram identificadas muitas outras espécies de carraças, tanto local como globalmente, em seis continentes, com capacidade para provocar a síndrome — incluindo a carraça Ixodes scapularis, ou carraça-do-veado, que também transmite a doença de Lyme.
Estas carraças podem esconder-se em quintais, parques urbanos e florestas, onde se agarram furtivamente aos caminhantes ao contacto com vegetação infestada. Com o crescimento das populações de veados e humanos, as populações de carraças estão a aumentar significativamente, tal como o número de pessoas com a síndrome alfa-gal.
Porque se culpam as carraças pela síndrome
Existem várias teorias sobre como uma picada de carraça desencadeia esta síndrome e por que razão apenas algumas pessoas picadas desenvolvem a alergia. Para as compreender, é útil perceber o que acontece quando uma carraça começa a alimentar-se do nosso sangue.
Ao encontrar um hospedeiro, a carraça procura uma zona quente e escura no corpo onde se possa esconder e fixar. Depois, os seus dentes serrilhados cortam a pele com movimentos rápidos.
À medida que penetra mais profundamente, a carraça liberta um tubo de alimentação com ganchos e segrega uma substância semelhante a cimento, que fixa a cabeça ao corpo do hospedeiro.
Depois de se fixar, a carraça injeta grandes quantidades de saliva, que contém anestésicos, anticoagulantes e, por vezes, moléculas de alfa-gal, para se alimentar sem ser detetada — por vezes durante vários dias.
Uma das teorias associa a reação alérgica à grande quantidade de saliva da carraça, que pode ativar uma resposta imunitária intensa. Outra aponta para os danos na pele causados pela carraça, ou ainda a possível regurgitação do conteúdo estomacal da carraça para o local da picada. Pode também ser uma combinação destes fatores. A ciência continua a investigar.
Como é a reação alérgica
A alergia não se manifesta de imediato. Tipicamente, entre um a três meses após a picada sensibilizante, a pessoa tem a sua primeira reação inesperada.
A síndrome alfa-gal pode provocar sintomas que variam entre urticária ou inchaço até dores abdominais intensas, náuseas violentas ou choque anafilático potencialmente fatal. Os sintomas surgem geralmente entre duas a seis horas depois da ingestão de carne ou outro produto com alfa-gal.
No entanto, devido à falta de conhecimento sobre a síndrome, os médicos podem não reconhecer os sintomas. Um estudo de 2022 revelou que 42% dos profissionais de saúde dos EUA nunca tinham ouvido falar da síndrome alfa-gal. Há uma década, os doentes podiam passar anos sem diagnóstico. Hoje, o diagnóstico é mais rápido nas regiões onde os médicos estão familiarizados com a síndrome, mas continua a ser difícil noutras zonas.
Infelizmente, com cada nova picada de carraça ou exposição a produtos com alfa-gal, a alergia pode agravar-se.